quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

ABSORTO

A nuvem avançou

Mudando suavemente
A matiz das cores
Na superfície.

Levou consigo
Minha sombra
Pra fazer chuva.

(ninguém observa uma nuvem sem estar absorto)

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

MEU MELHOR AMIGO DE INFÂNCIA

Meu melhor amigo de infância
Que desde então não revejo
Após sessenta anos de separação
Permanece ainda pequeno.

Tal qual aquele que recordo e sonho
Embora seja um tanto apagado
Um fantasma tirado da foto única
Que restou-me da turma do primário:

A mecha curva de cabelo caindo-lhe à testa
A boca precipitando a falar algo...
Ficou me dizendo tantas coisas...

Reconheceria-o hoje?
Casou-se? Tem filhos? Netos?
A mecha persiste?
Morreu?

Eternamente criança
Correndo atrás de uma pipa que escapou ao vento
Pelos vales recônditos da minha
memória falha
(Uma relva coberta aqui e ali
Com enxertos de imaginação)...

Eternamente criança
Até que o acaso ou um deus alegre
Nos faça cruzar um com o outro pelo caminho
Na faixa de pedestre
Ou na sessão hortifruti
Ou durante o banho de sol no jardim do asilo...

      E todo o espaço ocupado pela ausência se comprima
      E toda a carga degradante dos anos se dissolva
      Através de um brilho dos velhos olhos de menino
      Súbito, se revelará - Juliano!
      Meu melhor amigo de infância.

RETIRO

Dentro de mim
remoto
e deserto
concentro-me
ilha.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

SORTE

Não posso me culpar
Por ter mãos pequenas -
Mãos pequenas
Que não movem astros.

Inútil querer abraçar toda a vida
Haverá sempre algo a escapar por entre os dedos
Enquanto o coração puder falhar
Repentinamente.

Assisto, então
Curioso e encantado
Os movimentos da pluma
Solta ao vento:
Uma dança quase imprevisível
Se não terminasse sempre no chão.

O que hei de fazer comigo?

O destino
Deixo
Para o desleixo
Do acaso.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

O FAROL

Encontrei-me atraído
Pelo calor de uma luz acolhedora.
Mas não a possuo
Não posso possuí-la
Porque não a penetro.

Na escuridão da noite
De todos os cais
A lua contemplada
Como uma incógnita.
Permaneço ancorado
E à deriva.

Para onde ir?
Sou uma mariposa
Na confusão persistente
De chocar-se contra seu corpo
Fechado e nu.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

DIETA

Quem dera de repente eu perdesse a memória
E todos os instintos de sobrevivência...
Eu simplesmente morreria de fome.
   E a vida toda era só um vazio inquestionável
De dor
De dentro do estômago.

ACUPUNTURA

Muitos reclamam que a vida passa rápido
Que mal se lembram o que fizeram na semana passada...
Quer a plenitude do viver?
Vá à procura dos prazeres, há tantos...
Mas, se esses forem de difícil alcance
Ou já estiverem esgotados
Vá então atrás do sofrimento. Sofra, sim.
Porque sofrer é preciso, viver não é preciso.
Porque na dor aguda se precisa o estar, e -
Onde estou?
Ora! Eis-me aqui, completo, a cada segundo
Espetado por ponteiros de relógio!

DÚVIDA

Está em mim ou em você? -
Pergunto ao espelho em minha frente.
             E ele, encarando-me, reflete
                   Como quem nisso pensa
                    Enquanto eu nele penso
         Como se naquilo não refletisse...

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

NARCISO

Minha alma
Espelho d'água
Treme, ondula
Encrespa, borbulha.
Minha alma
Debruçada afunda
Nela mesma
Inerte e muda
Na superfície turva
Inerente.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

PRESENCIAL(MENTE)

Adeus, parti
Para o outro lado
Onde não existe ato
E o eterno é fato
Mas façamos um trato
Para que não haja engano:
Eu sou a fala sem voz
O toque sem tato
Eu sou a ausência em pessoa
Suave e imperceptível
Como o próprio ar
Te abraçando
Prolongadamente
Por todos os lados.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

O PINTOR

Há muito larguei os pincéis.
Todo aquele ritual de misturas
E limpeza de cerdas...
... Aborrece à preguiça.
Porém, a necessidade de pintar vem
E vai.
Vem com o cheiro do café da vizinha
Com a nuvem que se forma
Com o alarme de saída da escola...
E vai... com a sombra ligeira de um pássaro...
Tudo num estilo muito meu
Muito próprio
Muito minha cara...
Ah, como sou vaidoso
São tantos os autorretratos
Tudo alla prima
Em pinceladas livres e soltas
Que pinto com os olhos.

sexta-feira, 29 de julho de 2016

GOSTO

Gosto do seu gosto
Gosto às vezes doce
Gosto às vezes amargo
Gosto azedo que tanto gosto!

Gosto do seu gosto
Gosto duvidoso 
Gosto indefinido... porém, confesso:
Gosto que me confunda o gosto.

A BARREIRA CEDEU!

A barreira cedeu!
Está tudo acabado,
devastado!
A Graça foi levada
Pela enxurrada do tempo...
Nada sobrou, a não ser ele
O Tempo.
E agora?
Procurar uma árvore...
Avistar uma árvore...
...Cuja sombra estenda um leito, o meu leito.
E, deitado, olhando para o alto
As horas passem
Com as nuvens
A transmutarem-se
Em teu rosto
Imperceptivelmente.

GULA

Abocanhada por minhas pálpebras
dirigiu-se ao meu cérebro
onde passou a ser digerida
numa doce e lenta ruminação sem-fim...

INSENSIBILIDADE

Mais ou menos cálido
ou mais ou menos álgido?
Tanto faz... 
Insensível diante as sutilezas da mornidão
não distinguiste o cuspe dado contra tuas costas.

E depois da gota de suor
e do gemido liquefeito
foi a vez da lágrima cair - de mim sobre ti -
disfarçada de pingo de chuveiro.

ANCORADOURO

O vento está a favor
É tempo de partir, navegar...
A luneta me mostra um longo caminho
Em que chego antes.
(E logo avisto-me de regresso
Trazendo no rosto um ar de intriga
E cansaço)

O vento passa.
Não existe barco, nem vela
Apenas a porta do quarto rangendo
E finalmente batendo
Com grande estrondo.

CORRENTEZA

Que dia é hoje?
Que horas são?
Não sei.
Coloquei-me a frente do Tempo
e o Tempo, confuso, perdeu-se em mim
quando quis me seguir...
Quero ser insignificante
porque só assim se é feliz.
Quero ser passivo
porque só assim se é verdadeiramente livre.
Onde estou?
Procure-me nos destroços
Eu sou qualquer coisa
Eu sou o patinho amarelo de borracha
boiando
a mercê da correnteza
indiferente
das horas.

VALSA

Tive de tomar distância
E observar durante anos
Até captar o padrão dos movimentos...

E constatei que
Tudo envereda-se num ciclo
Num ritmo
No qual tudo está comungado.

Já não temo a morte.

Sinto a pulsação da Vida
Regendo o sangue em minhas veias
Para além do corpo:
      No balanço do pêndulo
      No rolar das ondas
      Na dança das galáxias...

TRÉGUA

O coração bate
Como quem dita:
Vi-va... Vi-va...
Eu obedeço
Permaneço vivo
Vivo aqui, vivo ali
Vou vivendo.
Mas, como um mantra
Cujas palavras perdem
Aos poucos, o sentido
Pego o coração
Em um momento errante
Fora do compasso
Repetindo:
Fin-da... Fin-da...

REMINISCÊNCIA

O vento, num sopro breve
Fresco em minhas costas
Pareceu me empurrar
Enquanto andava.
E eu achei-me graça
Por ter assentido
Como quem corresponde
Ao cumprimento
De um desconhecido.

MARASMO

Este marasmo é uma tela em branco
Cercada de pincéis e tintas coloridas.
É o ar estagnado dentro de um violão.
É o espelho d'água inabalável
Refletindo a margem ensolarada de um lago
Onde os jovens se deitam na grama
Perplexos
Com o suor a escorrer cada vez mais
Por debaixo de suas roupas.

(Breve haverá uma explosão de cores
Alguém quebrará o silêncio
Com um grito selvagem
Ao atirar-se contra a água
Completamente nu.)

CONFEITARIA

Pálpebras
Feito boca
Fecham-se
Apreendendo:

Mordo
Mastigo
Degluto
Digiro.

Cada bunda
Um estupro.

EPIFÂNIA

Colossal, deus desceu dos céus
Estrondeante e turbulento
Até pairar sua face diante da minha.
E com a ponta do dedo
Tocou-me suavemente a testa
Dizendo:

Vê, rapaz, tua pequenez tem o tamanho da tua significância.

Um estalo de dedos me trouxe de volta.
Onde estava, perguntaram
... Não sei, balbuciei
Ainda tomado por uma coceira na testa
Algo que foi rapidamente se esvaindo
E se esquecendo
Até tornar-se num vestígio de sisma, sonho e nada.

Estava de volta.
Rapaz de estatura média
Recomposto e insatisfeito
Com seus 1,71cm de altura
E um vinco novo na testa
Respondendo:

Não sei.

PASSAGEIRO

Trânsito lento
Acidente à frente.
Homem no acostamento
Dilacerado entre pneu e asfalto.
Credo.
Buzinas reclamam:
O caminho está livre, anda!
Mas logo se calam
Na sua vez de atender à breve curiosidade...
No ônibus a multidão estica o pescoço
Eu também estico
Enquanto embarca um novo passageiro.
O motor volta a acelerar
A viagem agora segue quieta
Postes, fios, fachadas, garagens...
Vultos de nada passando pela janela -
Porque o novo passageiro entrou
E sentou-se ao nosso lado
Exibindo as nossas entranhas.

quarta-feira, 27 de julho de 2016

FLOR DE CACTO

Você sustenta um aviso:

- CUIDADO
NÃO TOQUE
ESPINHOS -

Então, como abraçá-la
Beijá-la, senti-la?

Afinal, o que é possuir?

Contato com tato
Sem tato, tanto faz
Contanto que haja ardor
Sempre haverá dor
Uma ferida a estancar.

Ah, esse desejo
Não há nada a fazer
Além de me contentar
Em contemplá-la
À distância.

E neste casto acolho
Colho
A olho
Meu amor intacto
Minha flor de cacto.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

PELAS CALHAS

Dormi demais, de novo.
Saio apressado para o trabalho
Quando me deparo com as ruas todas molhadas
Tomadas por poças.

Choveu e eu não vi.

Mas então por que este cansaço
Este resíduo de excitação
Pingando pelas calhas
E tamborilando na superfície
De maneira tão íntima e preguiçosa
Como se tivéssemos dançado
A chuva e eu, juntos
A madrugada inteira?

ORGIA

Só durmo só.
Hábito adquirido em anos de solidão.
Durmo eu, meu colchão, meu travesseiro, meus ácaros...
Qualquer outro corpo que não o edredom moldado para o ajuste da melhor posição
É um corpo estranho, não identificado
Intruso.

Já me tiraram muito do que é meu
E de mim
Agora querem furtar meu sono.
Querem violar a intimidade dos olhos fechados
Querem possuir o corpo inanimado
E abusar.

(Na escuridao
Uma sombra felina
Com dois olhos brilhantes
Como unica testemunha.)

Entra a noite
E com ela os sussuros
Para quebrantar o silêncio.
Pedintes espreitam a porta do meu quarto
Implorando por uma breve dose de amor.
Cedo, enfim
Divido minha cama
Há espaço para todo tipo de volúpia numa cama de solteiro
Mas nao divido meu sono.
Só durmo só.

Dou por mim no meio de um emaranhado de corpos entorpecidos
A nudez compartilhada e confundida
Numa orgia de sonhos indefinidos dos quais nenhum quero fazer parte.
Desvencilho-me do aperto de um abraço
Do peso de uma coxa...
Estou cansado, e só quero dormir.

Meu bem, não há espaço na cama de solteiro
Para sonhos alheios.
Amanheço todos os dias no chão (caí?)
A cama bagunçada
E a lembrança de um rosto
Semelhante ao meu...
Quem me sonhei?

Só acordo só.

PREGUIÇA

te contemplo por horas
eu sei como admirá-la
sei como fazer meus olhos percorrerem
por entre as ranhuras tortuosas do seu tronco
sei fazê-los penetrar na folhagem densa de sua copa
até chegar em teu seio.

eu me arrasto e me ajoelho
em adoração
para beijar tuas raízes
e vou subindo
agarrado
como o mais lento dos animais.

você é tudo
e meu abraço pequeno
percorre um trajeto lento e doloroso:

uma trilha de formigas
uma casca
uma cicatriz em forma de coração - selando duas iniciais
uma bifurcação
um ninho
uma lesma eriçada
uma interdição, um retorno
uma flor indecisa
um pingente de seda desabitado
uma fenda
uma fruta 
um galho
e mais um galho -
ou o desejo petrificado
de querer confundir-me em ti.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

PREVISÃO DO TEMPO

sou arrebatado por um momento de clareza
que se dá no mesmo tempo de um relampago.
situo-me, enfim, no mundo
no silêncio que precede a tempestade.

nada me escapa.

havera algo de pedinte e impalpável
nos primeiros pingos que atingirao a multidão.
mas, constatada a suspeita
suas maos serao logo afastadas
e eu notarei
o sincronismo 
quase ornamental 
no abrir dos guardachuvas.

sobre o topo dos arranha-ceus
e as folhas altas das arvores
a crescente de uma salva de palmas
se intensificara, de repente, numa saraivada
por cima de tudo que é superficie.

o ceu irá transbordar
e escorrer.

o solo nada mais terá a beber.
o chao serao poças que se fundirao
e se transformarao em ondas
no deslisar abrupto dos carros.

meus pes serao molhados
mas nao me importarei.

       rugido sobre as nuvens 
       nuvens indistintas
o ceu todo sera de um cinza chumbo
onde deus brinca com seu leao alado.
alguem pedira o livramento de um novo diluvio
alguem lançara um desafio
e deus, bufando de tedio
lançará a chuva sob os toldos
com suas gotas em italico.

todas as perguntas são respondidas
tudo faz sentido
a agua molha, o vento esfria.

...

e eis que tudo se  acalmara..
talvez um vislumbre repentino de sol...
mas, nao, a tempestade nunca termina
continuara como antes
intensa, pesada...
na verdade é como se o mundo
sempre tivesse sido assim.

alma lavada?
sentido intimo das coisas?
afinal, qual era mesmo a pergunta?
tudo se desvanecerá
com o calor acolhedor do sol
e a unica lembranca vagamente guardada
sera a de um carrocho vira lata
enxarcado e indiferente.

A FONTE

Por vezes aventuro-me na intençao de me perder de olhos fechados no pequeno labirinto que existe no meu jardim. Gosto de pensar que, ao abrir os olhos, irei deparar-me com um recanto de flores, pássaros e borboletas raras...
Mas, não. Por tantas vezes visitado, já não posso me enganar. Conheço exatamente o caminho, cada curva que leva à saída.
Existe uma fonte, com uma figura de nudez vulgar, de cabelos esverdeados, já infértil, na pose eterna de derramar o conteúdo vazio de uma tigela em coisa nenhuma. Olho para ela, sem vê-la. O labirinto é o mesmo, não esconde nada. Resta-me sair, mas, engano-me! Com o olhar mais atento percebo que sobre a tigela resiste um pequeno ninho! Meu coração apertado prediz abandono, talvez  morte. Então, devagar, aproximo-me, como quem teme assustar ou ser assustado. Olho para a tigela, depois para a mulher. Ela está sorrindo, eu estou sorrindo. A Fonte agora transborda.

MARINA

Ondas, sao tao... temperamentais...
O tempo fecha e elas ja se agitam...
E se chove, vira uma desordem
Um transtorno!
Mas como ficam calmas a tardinha...
Quando o sol se poe
E os passarinhos se calam
Eu mergulho meu rosto
Para me afogar
No perfume de condicionador
Dos seus cabelos.

FOLHAS SECAS, AREIA MOLHADA

Algo me conduz para o lado de fora.
Vagarosamente caminho
Atraído pela luz.

Nao tomo decisoes
Nenhuma decisao eh minha
É de qualquer coisa
É da variaçao do ar.

Passei do ponto, dei conta disso, e voltei.
Agora estou indo de novo.

Deixo-me levar, casual
Casual como a mudança do vento
Subito, como uma lufada maritima.

Estou sempre do lado de dentro
Cortinas sempre fechadas
Observo lá fora
Querendo ou nao sair.
Se calhar de haver luz
Que haja luz
A luz de uma brecha eh sempre atraente.

Por um segundo vi alguem passar
Vestia escuro, certeza que era homem.
Foi a pessoa mais interessante que vi na vida.

Só sei que eh dia
Quando o corpo se agita
E sob o sol do meio dia
Nao ha palpebra fechada
Na qual nao penetre luz
Luz vermelha coada de sangue
De vida, coagulando-se.
Escutei um riso de criança
Por um momento quis sair
Então não vou sair.

Faltou-me o ar -
Aquele ar do sonho

Tenho sonhado:
Eu corro fugindo, ou atrasado
Estou descalço
Piso em folhas secas, areia molhada...
Ou corro só por correr?

Olhos abertos feito fenda
E o orvalho dos cílios
É um prisma cintilante
Da noite passada.

Morri assim
Com os olhos meio abertos
Ou fechados, pra quem olhe por cima.
Deixei a janela semicerrada.

Eu nao sou daqui
Sou do campo, da montanha
Do mar
De onde nunca estive.

Adeus.

Eu costumava ter um quarto
Cortinas sempre fechadas.
Eu apareci e sumi.

Adeus.

Eu apareço e sumo.
Eu sou uma particula de poh
Flutuando no feixe solar
Quando você abrir a janela
Pela manhã.

MÁGICA

E o Tempo
Como um mágico
Em seu maior truque
Te surpreende
Ao tirar da gaveta uma foto
De quando seus olhos eram pequenos
E brilhantes.

PAISAGEM

Qual o interesse?
Por que tanto olha?
Você não sabe, mas
Nada esconde a neblina.
Além da neblina: nada.
Nenhum bosque
Nenhuma montanha
Nenhum monumento
Mar. Nada.
A neblina não esconde nada!

...Só, talvez
O muro caiado
De uma catedral branca
Abandonada...

A CONCHA

Olha o picolé
o espetinho de camarão
a combinação inusitada do biquíni
o guarda-sol patrocinado
a pipa a deriva.

Mais um castelo destruído
pelo simples prazer de destruir
e sentir a areia passar entre os dedos
O garotinho vai encher o balde de novo
e encontra algo
Chacoalha, cheira, lambe, procura dentro...

Olha a pomba
o transatlântico
o bimotor vermelho
estendendo no céu uma faixa e uma promessa:
Amanda, amor eterno...

De repente uma tristeza
um vento frio, um agouro
O sol se esconde
acinzenta.

Esteiras enroladas a grosso modo
cadeiras comprimidas
Penso que sempre sou agraciado
com o primeiro pingo
direto no nariz.

Olha a chuva
As linhas entrecruzadas
do rastro da bicicleta
Olha a pipa a deriva
a onda crescente
Olha o garotinho
parado à beira d'água
concha colada no ouvido
olhando pro nada.