domingo, 25 de julho de 2021

O FURTO

Luz apagada. Foi como se tivesse tido finalmente permissão para piscar os olhos, esses, agora, com um retângulo luminoso impresso temporariamente na retina. O relaxamento dos músculos, acompanhado de um profundo suspiro, fê-lo ajustar-se melhor no banco do seu automóvel.

Estava ali estacionado desde o entardecer, fixado na janela de uma casa do outro lado da rua: a janela do alto, presumidamente do quarto, cuja sombra solitária de uma mulher projetava-se andando, vez ou outra, através da cortina. 

Perguntou-se quanto tempo uma pessoa normal leva para pegar no sono depois de apagada a lâmpada. Por garantia, esperaria mais duas horas. Invadiria à meia noite.  Nesse tempo poderia ensaiar mentalmente onde encaixaria cada pé e mão para transpor o portão de entrada o mais rápido possível. Descartou a ideia de escalar a parte do muro forrada de vegetação.


Céu noturno encoberto. Lua nova, oculta. Nenhuma estrela. Nenhuma movimentação dentro das casas ao lado. O frio leva as pessoas cedo pra cama. Um carro de vez em quando. Uma moto. Um cachorro revirando a particularidade dos vizinhos. Tudo tranquilo em mais uma noite alheia e pacata no bairro suburbano da periferia. 

Percebeu, pelo retrovisor, alguém vindo de longe. Um homem? Um velho. Andando curvado, encolhido. Seria devido à idade ou ao cansaço após um longo dia de trabalho? Ou devido à garoa? Pois começava a garoar, uma garoa fina, dessas que não justifica o trabalho de sacar o guarda-chuva apesar de alfinetar os olhos. O velho aproximava-se um tanto desequilibrado. Passando ao lado do carro fez menção de tocá-lo, como que para apoiar-se, mas, calculando mal, desequilibrou-se ainda mais, esbarrando com estrépito as duas mãos no vidro da janela de onde era observado. Com os olhos injetados de álcool e terror, pareceu, por três segundos, encarar alguém no interior do veículo, mas logo se recompôs, ajeitando a roupa, ereto, para seguir novamente seu caminho como se nada tivesse acontecido. Não, quem quer que estivesse dentro do automóvel, não fora visto, Ninguém podia vê-lo. Pois não poderia haver testemunhas. O bêbado havia vislumbrado senão a vergonha do seu próprio reflexo, graças aos vidros enegrecidos de um carro antiquado, que sabia ser mais discreto que sombrio. As gotículas de água sobre o para-brisa ansiavam por encontros. Juntavam-se, uniam-se em breves acasalamentos, e fugiam. Como podia distrair-se com tais insignificâncias há tão poucos instantes de cometer seu crime, perguntou-se, enquanto a garoa era submetida a uma surpreendente chuva torrencial.


Deu por si já dentro da casa. Não lembrava como havia atravessado a rua. Não sabia como havia feito para se encontrar ali parado, em pé, seco, no meio da sala de estar. Um tanto atordoado, passou os olhos rapidamente ao seu redor. Compartilhando o mesmo edredom aveludado de penumbra, os móveis, os quadros, as plantas, os livros e todos os pequenos objetos que ali repousavam com intimidade, pareciam despertar para apontá-lo como intruso. Um relâmpago revelou-lhe as feições da dona da casa em um dos porta-retratos, lembrando-o para o que estava ali, de fato. 

Teve a impressão de ter subido flutuando a escada para o quarto tão logo a localizou. Mas já não se questionava. O torpor sobrepunha-se à razão. A mulher, em seu período de desabrochamento, estava ali, à sua frente, e exalava, para ele, o perfume, o cheiro, o fruto de toda sua sede e fome. O que antes podia ser sentido a centenas de metros de distância, agora era forte e causticante. Não podendo conter a quantidade de saliva gerada, sua boca transbordou, e suas pupilas se dilataram preenchendo toda a íris.

O ataque é voraz, sim, mas não alarmante. Como um animal furtivo e rasteiro, entrou por debaixo da coberta onde a moça dormia e sonhava de seios apontados para o teto.  Evitando o contato abrupto de suas mãos geladas, abriu caminho, devagar, entre as pernas dela, usando somente a cabeça, e, com a ponta das unhas, que eram longas, despiu-a até o ponto onde pudesse se acomodar melhor para sugar-lhe o fluído vital.

Nunca fora preciso tapar-lhe as bocas.

As vítimas, como que imobilizadas, deixam-se levar em seu abatimento. Ficam entregues, amansadas, sem resistência. É possível, entre o som da chuva castigando os telhados lá fora, escutar um ou outro gemido de enlevo escapado.

É o leão e o novilho, a abelha e a flor.

No dia seguinte pode ser que a mulher acorde um pouco extenuada. Uma noite mal dormida, um sonho mal sonhado. Nenhuma impressão que não seja omitida mesmo antes do tempo de sair para o trabalho. Por coincidência, sentirá após o banho que fora submetida a um agradável processo de purificação, e que o vigor, assim, tão subitamente restaurado, seja consequência senão do café que acabara de tomar...

Mas, ainda assim, prestes a fechar a porta de casa, olhará mais uma vez, hesitante, como se esquecesse de pegar algo. Como se tentasse lembrar... 

E irá partir, desapegando-se, já na próxima esquina, da sensação de que algo seu fora furtado.