quarta-feira, 29 de novembro de 2023

CABELO

Corta o cabelo
Corta
Como quem os pulsos corta
Como quem amputa um membro
Partes fios do corpo excesso
Que a vida parece estar em excesso
E é preciso drená-la você diz

Corta o cabelo
Corta
Como quem corta a dor
Com mais dor:
Dói de ver
Cultivados com esmero
Toneladas de tempo shampoos
E condicionadores
(E a condição é que ao serem abatidos
Caiam com estrondoso pesar)

Corta as amarras
Esfolia a face
Poda as unhas
E se desmonta em partes unhas por aí
Que grande parte da poeira do mundo é feita de pele morta (da sua pele morta)

Mas de repente o vento é um pente
Que melhor lhe ache a cabeça categoricamente 
Eu lhe direi
De repente meus dedos são até melhores que o vento
Melhor que o melhor pente que se possa comprar
E você sinta-se com eles os meus dedos leves muito leve
Courocabeludamente

Que tal um pedra papel tesoura pra passar o tempo você sugere
Mas há pedras que cortam
E papéis que cortam ainda mais oh se cortam
E a lâmina da sua tesoura embora cega corta tudo tudo
Até todo o seu lindo cabelinho 
Porque é forte e fraca
Porque o cabelo é nada e tudo
Do que você está falando
O que é forte o que é fraca
Desculpem não usamos interrogação 

Vamos conversar
Vamos passear
Vamos
Pelas praças e os jardins dos outros onde as flores são mais bonitas
Você me aponta as flores para que eu lhe diga os nomes
Me aponta a coruja sonsa no poleiro pronta pra dar o rasante
Me aponta a mim mesmo tocando meu nariz como que pra me situar que
Eu to aqui

Enquanto isso seus cabelos crescem de novo
Sem que você os perceba
É só cabelo
E crescem a ponto de tocar o chão 
E eu já posso ver você arrastando-os pela casa
Fazendo-os misturar à terra à grama às poças de chuva do nosso quintal
Às frutas que caíram das árvores do sítio que visitamos semana sim semana não 

É só cabelo
São só fios
Finos frágeis pálidos 
De uma palidez fantástica 
De uma palidez assombrosa

Fino frágil e pálido
Como a linha do tempo que marca todo o tempo que passamos juntos.

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

P R I S M A

não me leve a mal
não me leve 
ao fundo no fundo
o mar é turvo e não 
se enxerga nada não 
me deixe confuso me deixe 
aqui quieto eu só 
quero ver as ondas
eu só quero ver a praia
a praia que é mais 
pra todos e menos 
pra mim que é de toda criança 
e das gaivotas 
eu 
só quero ver a praia a mesma praia 
que deságua em preto 
e branco
nas retinas de qualquer cachorro