segunda-feira, 25 de maio de 2020

O MAR DE DE REPENTE

O sol das onze misturado ao ar gelado me fazia bem, e já era uma das melhores novidades que a viagem para aquela charmosa cidadezinha no interior do sul podia me trazer. Após perder meu brinquedo para os ramos altos da árvore que sombreava a casa de madeira onde estávamos hospedados, me dispus, não sei porquê, a subir aquela rua de terra. Subi devagar, cabisbaixo - não haviam trazido outras crianças. Na mão a parte do brinquedo onde se enroscava e liberava a hélice para percorrer o espaço era, então, inútil. Lembro que era uma ruazinha ingrime, disforme, de terra clara, quase branca, que a minha sombra crespa, à frente, maculava para a minha distração. Diria que as casas que ali ladeavam eram todas abandonadas, se de dentro delas não exalasse o cheiro do almoço sendo preparado. Soava uma espécie de música entre o farfalhar de arbustos trêmolos e a crocância das pedrinhas que eu pisava, com muito gosto, por sinal, porque reverberava por todo o meu pequeno corpo em prazerosa vibração. A certa altura já não sabia se aquilo poderia ainda ser chamado de rua, não havia mais casas e duvido que algum automóvel conseguisse chegar naquele ponto sem dificuldade. Não lembro se já sabia o significado da palavra penhasco, mas, lá estava eu, à beira, no topo.

Hoje me surpreende a ideia de ter achado naquele momento o mar e não ter me surpreendido com ele. Me esforço para evocar tal visão, que deveria ter sido, no mínimo, fotografada e impressa em cada partícula que compunha a alma inexperiente e despreparada de qualquer outro garoto naquela ocasião.

Breve clarão azul-dourado. Panorama infinito, bidimensional. Horizonte cortado com frieza e exatidão. O que eu poderia ter pensado? Não tinham me avisado! Acho que as nuvens foram feitas para confrontar essa geometria... Lá em baixo, manto brilhante... linhas brancas... arqueadas... desdobrando-se... para explodir... sonâmbulas, em pedras, talvez. Só estou supondo.

Talvez eu já o tivesse visto, ou previsto, e tudo não passava de um encontro marcado, e a lufada marítima nos cabelos fora nada mais que o cumprimento de um colega antiquíssimo, que esteve sempre presente...

Gostaria tanto de poder me lembrar daquele mar (o mar de de repente), e do rosto dos meus colegas de infância, do mesmo jeito como agora consigo, tão bem, tão detalhadamente, em termos de dimensão, cor, textura, peso... me lembrar da hélice...

...Da hélice de brinquedo que ficou pra sempre presa nos ramos altos daquela árvore.

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