sexta-feira, 27 de agosto de 2021

NA SACADA

Era noite de clima agradável
De tempestade sem nuvem
De silêncio em música alta.
Eu, deitado com a cabeça apoiada nas suas coxas
Tentava te enxergar por outro ângulo
(De baixo pra cima):
Seu rosto destacado no abismo fusco
Olhos a anos luz de distância...

Hora perfeita pra te arrancar um sorriso
Mencionar a lua
Que era cheia e cintilante
E figurava no topo da sua cabeça como um adorno que prende ao cabelo...

Mas não disse nada.
(Esqueci antes que pudesse dizê-lo.)

Luas, satélites, discos voadores
O corpo celeste que fosse 
Era ordinário, invisível, (não era nada).
Até os anjos (os gatos) deslustraram-se...
    Todos eram meros figurantes
    Na sacada onde você fulgurava.

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

A PINTA DA TEREZA

Dunas de um deserto de veludo
Noite fria secando o sal do suor
Eu seguia disperso no caminho
Até esquecer onde era o destino.

Perdão se me desviei uma vez ou outra dos teus olhos
É que os viajantes precisam recorrer a algum ponto fixo
Quando se vêem prestes a cair na perdição...

Que seja o Norte
Ou uma estrela
Pode ser o pico da montanha mais alta
Ou a pinta no ombro da Tereza.

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

ME AMA

Me ama
Me chama
Na cama
Na lama
No alto
Da varanda
Pra todo mundo ver
Como você 
Me mama.

Me ama
Me dana
Me doma
Sem drama
No quarto
No mato
De salto
Pro alto
E de quatro
Me mama.

Me ama
Minha ama
Minha dama
Minha dona
Meu chuchu. Minha florzinha, seja minha esposa
Vamos nos casar comprar uma casa
Ter filhos um cachorro um gato dois gatos eu te amo
Vamos fazer amor todas as noites eu vou te acordar com um beijo e com uma bandeja de café da manhã
Com café leite torrada pão de queijo bolo de fubá suco de laranja até ficarmos bem velhinhos e no dia que um morrer o outro não vai nem aguentar tanto que vai morrer também na mesma hora abraçados

Me ama
Me engana
Me esgana
Com gana
Você reclama
Depois clama
Vai, faz sua fama
No fundo, você gosta
Você gama
Cala a boca logo
E me mama.

domingo, 25 de julho de 2021

O FURTO

Luz apagada. Foi como se tivesse tido finalmente permissão para piscar os olhos, esses, agora, com um retângulo luminoso impresso temporariamente na retina. O relaxamento dos músculos, acompanhado de um profundo suspiro, fê-lo ajustar-se melhor no banco do seu automóvel.

Estava ali estacionado desde o entardecer, fixado na janela de uma casa do outro lado da rua: a janela do alto, presumidamente do quarto, cuja sombra solitária de uma mulher projetava-se andando, vez ou outra, através da cortina. 

Perguntou-se quanto tempo uma pessoa normal leva para pegar no sono depois de apagada a lâmpada. Por garantia, esperaria mais duas horas. Invadiria à meia noite.  Nesse tempo poderia ensaiar mentalmente onde encaixaria cada pé e mão para transpor o portão de entrada o mais rápido possível. Descartou a ideia de escalar a parte do muro forrada de vegetação.


Céu noturno encoberto. Lua nova, oculta. Nenhuma estrela. Nenhuma movimentação dentro das casas ao lado. O frio leva as pessoas cedo pra cama. Um carro de vez em quando. Uma moto. Um cachorro revirando a particularidade dos vizinhos. Tudo tranquilo em mais uma noite alheia e pacata no bairro suburbano da periferia. 

Percebeu, pelo retrovisor, alguém vindo de longe. Um homem? Um velho. Andando curvado, encolhido. Seria devido à idade ou ao cansaço após um longo dia de trabalho? Ou devido à garoa? Pois começava a garoar, uma garoa fina, dessas que não justifica o trabalho de sacar o guarda-chuva apesar de alfinetar os olhos. O velho aproximava-se um tanto desequilibrado. Passando ao lado do carro fez menção de tocá-lo, como que para apoiar-se, mas, calculando mal, desequilibrou-se ainda mais, esbarrando com estrépito as duas mãos no vidro da janela de onde era observado. Com os olhos injetados de álcool e terror, pareceu, por três segundos, encarar alguém no interior do veículo, mas logo se recompôs, ajeitando a roupa, ereto, para seguir novamente seu caminho como se nada tivesse acontecido. Não, quem quer que estivesse dentro do automóvel, não fora visto, Ninguém podia vê-lo. Pois não poderia haver testemunhas. O bêbado havia vislumbrado senão a vergonha do seu próprio reflexo, graças aos vidros enegrecidos de um carro antiquado, que sabia ser mais discreto que sombrio. As gotículas de água sobre o para-brisa ansiavam por encontros. Juntavam-se, uniam-se em breves acasalamentos, e fugiam. Como podia distrair-se com tais insignificâncias há tão poucos instantes de cometer seu crime, perguntou-se, enquanto a garoa era submetida a uma surpreendente chuva torrencial.


Deu por si já dentro da casa. Não lembrava como havia atravessado a rua. Não sabia como havia feito para se encontrar ali parado, em pé, seco, no meio da sala de estar. Um tanto atordoado, passou os olhos rapidamente ao seu redor. Compartilhando o mesmo edredom aveludado de penumbra, os móveis, os quadros, as plantas, os livros e todos os pequenos objetos que ali repousavam com intimidade, pareciam despertar para apontá-lo como intruso. Um relâmpago revelou-lhe as feições da dona da casa em um dos porta-retratos, lembrando-o para o que estava ali, de fato. 

Teve a impressão de ter subido flutuando a escada para o quarto tão logo a localizou. Mas já não se questionava. O torpor sobrepunha-se à razão. A mulher, em seu período de desabrochamento, estava ali, à sua frente, e exalava, para ele, o perfume, o cheiro, o fruto de toda sua sede e fome. O que antes podia ser sentido a centenas de metros de distância, agora era forte e causticante. Não podendo conter a quantidade de saliva gerada, sua boca transbordou, e suas pupilas se dilataram preenchendo toda a íris.

O ataque é voraz, sim, mas não alarmante. Como um animal furtivo e rasteiro, entrou por debaixo da coberta onde a moça dormia e sonhava de seios apontados para o teto.  Evitando o contato abrupto de suas mãos geladas, abriu caminho, devagar, entre as pernas dela, usando somente a cabeça, e, com a ponta das unhas, que eram longas, despiu-a até o ponto onde pudesse se acomodar melhor para sugar-lhe o fluído vital.

Nunca fora preciso tapar-lhe as bocas.

As vítimas, como que imobilizadas, deixam-se levar em seu abatimento. Ficam entregues, amansadas, sem resistência. É possível, entre o som da chuva castigando os telhados lá fora, escutar um ou outro gemido de enlevo escapado.

É o leão e o novilho, a abelha e a flor.

No dia seguinte pode ser que a mulher acorde um pouco extenuada. Uma noite mal dormida, um sonho mal sonhado. Nenhuma impressão que não seja omitida mesmo antes do tempo de sair para o trabalho. Por coincidência, sentirá após o banho que fora submetida a um agradável processo de purificação, e que o vigor, assim, tão subitamente restaurado, seja consequência senão do café que acabara de tomar...

Mas, ainda assim, prestes a fechar a porta de casa, olhará mais uma vez, hesitante, como se esquecesse de pegar algo. Como se tentasse lembrar... 

E irá partir, desapegando-se, já na próxima esquina, da sensação de que algo seu fora furtado.


terça-feira, 15 de junho de 2021

INSÔNIA

Do trigésimo nono andar eu tinha uma boa vista do que se resumia então o mundo. Estávamos imersos num clima denso, lúgubre, de uma coloração avermelhada, como se enxergássemos através de uma taça de vinho tinto. Era o efeito atmosférico causado pelo Insônia, finalmente próximo de nos abocanhar depois de meses de estimativas e incertezas.

As ruas sofriam a ressaca dos piores dias de delírio e depravação. Os bueiros exalavam o cheiro de onde terminava por escorrer a mistura diluída de todos os pecados cometidos. O sol, já interceptado, nos deixou nas trevas. E foi nas trevas, protegidos pelo anonimato, que mostramos nossa verdadeira face. Foi nas trevas, entre gemidos de dor e prazer, que emitimos nossa verdadeira voz, que é gutural, animalesca.

Quem não enlouqueceu, ficou inebriado por sua própria lucidez. Estávamos, afinal, saciados de tudo que só um fim do mundo poderia conceder. 

Depois, os que sobreviveram, ou decidiram viver, depararam-se com o desejo inquestionável de se recolher, quase que ao mesmo tempo, para aquilo que ainda podiam chamar de suas casas, não para se esconderem do inevitável, mas para procurar todo o conforto que pedia a falta de fé e esperança. 

Foi quando começamos a cair, aos poucos, num severo ensimesmamento, até instaurar-se uma espécie de silêncio religioso, sibilante, que nos arrepiava os cabelos de todo o corpo quando quebrado pelo menor objeto caído, ou mesmo por um grito abafado pela neblina de algum beco sem saída. Ainda reverbera dentro da minha cabeça uma melodia doce e feminina que direcionou a atenção de todos para debaixo da ponte. Por alguns minutos pudemos esquecer nossa sorte, até a canção ser interrompida com um engasgo seco, justo quando galgava para seu momento apoteótico. 

Era preciso ficar calado, porque, assim, era possível escutar o ar sendo aspirado pelo céu, como se aquilo tomasse profundo fôlego antes de proferir uma grande revelação.

Eu também cheguei a procurar a cama, algumas vezes, para amortecer o momento da minha ida, quem sabe, dentro de algum sonho ensolarado, ou mesmo para tentar converter o suplício em mero pesadelo. Mas não havia sono. Pelo contrário, consumia-me a ansiedade, a inquietude da alma e das células, pelo o que iria acontecer. Seria possível sobreviver à ingestão? A quê caminhos avessos seríamos levados depois de adentrado ao absurdo? 

Dizíamos negro. Mas não era negro. Era mais escuro que isso. Era mais escuro que uma noite de céu amortalhado. Mais escuro que o espaço sem estrelas. Mais escuro que o absoluto nada, antes da primeira fagulha de ideia de existência. Era, talvez, o negro presente na visão de quem tem os olhos arrancados. Assim eu me sentia quando olhava para o céu, para o centro daquele grande círculo negro, cujo contorno, um halo de luminescência opaca e cor sanguínea, se assemelhava, cada vez mais, a vivos, frescos, úmidos lábios joviais.

Continuei na varanda, olhando fixamente para o alto, como se não houvesse mais nada a fazer. E isso não se deu só comigo. Creio que cada animal ficou a espiar pelo buraco de sua toca. Era possível ver a silhueta de uma ou duas pessoas ocupando cada janela dos prédios e casas vizinhas. Seus olhos deixavam de refletir qualquer brilho. Suas pupilas pareciam dilatar-se para além das órbitas, em profundas olheiras. Era o processo acelerado e indolor da dessecação da pele, carne, músculos... Os orvalhos vermelhos, expelidos dos nossos poros, flutuavam com gotas cintilantes de lágrimas, em uma dança sincronizada e ascendente. Era emocionante. Creio ter sentido minha mandíbula deslocar-se ao esboçar um sorriso... 

Mas, já então, esvaía minha consciência, a situação dos meus membros, órgãos, a distinção do que era eu, ou a escuridão... 

Resisti até o último segundo. 

Como uma criança que não dorme sem antes receber o seu tão aguardado beijo de boa noite.

quarta-feira, 9 de junho de 2021

MIRANTE

2311. Te observo dormir. Não sei por que, mas algo dentro de mim diz que isso é errado. Indecoroso. Pervertido.

2329. Sinto estar invadindo uma área restrita. Com cuidado, vasculho suas linhas de expressão a fim de lhe furtar qualquer segredo. Estou apreensivo, pronto para fechar meus olhos assim que você abrir os seus.

0008. Você dorme de lado, virada para mim, e parece estar sempre prestes a acordar, como se meu olhar fosse molesto e emitisse a luz inconveniente de uma lâmpada que penetra por suas pálpebras, invadindo o cenário do seu sonho com uma pavorosa aurora escarlate... Mas, não, você não ousa me dar as costas. Dorme tão profundamente, tão segura de que eu nunca poderia te fazer qualquer mal, que, essa presunção, de que eu seja um homem inofensivo, me atinge como uma afronta.

0223. Veja você, tão indefesa, tão vulnerável, com sua camisola folgada por onde seu corpo parece querer fugir. Está calor. E o lençol é uma pele que você troca e vai deixando pra trás, descendo pelos calcanhares. A metade de uma aréola me espia com desconfiança. Sim, eu poderia fazer o que quiser com você, inclusive te matar.

0258. A alvura da sua pele, que eu tanto amo, não é páreo para a obscuridade que nos cerca à cama. Você está cinza - é cinza. E me parece um pouco morta. Talvez esteja, mesmo. Seu rosto, às vezes, adquire essa fisionomia estranha, que vai aos poucos se contorcendo, entrando numa espécie de espiral, até se transformar em algo absurdo, animalesco, monstruoso. Meu coração dispara. Por pouco não grito. Se eu gritar, digo que foi um pesadelo.

0314. Seu rosto não condiz com seu nome. Aliás, qual será o seu nome? Me pergunto o que é isto com quem divido a cama. Quero te acordar, te chacoalhar com violência para que me mostre novamente alguma vida, algum brilho, qualquer brilho, que seja os números vermelhos do rádio-relógio refletidos na superfície dos seus olhos vidrados com o meu pânico!

0315. Sempre tive dificuldade de achar a forma oculta nesses desenhos ambíguos. Me inclino sobre você, metade apavorado, metade curioso. Uma mudança sutil do ponto de vista, o bafo da sua respiração nos meus olhos, e suas feições ordinárias retornam como num passe de mágica. Não entendo, mas me sinto um pouco decepcionado...

0338. Você inspira pelo nariz e expira, parcialmente, pela boca. Uma estreita fenda úmida, sibilante. Ausculto-a como quem procura o mar dentro da concha. E acho, para a minha surpresa, entre a brisa e a maré, alguma excitação perdida, crescendo aos poucos conforme me aprofunda a ideia de me esgueirar por entre seus lábios. Claro, você acordaria mesmo antes de se sentir sufocada. E o tempo para perceber que não se trata nada de um ardente acesso lúbrico, e sim de uma real tentativa de afogamento, seria curto demais para a intervenção de unhas e dentes.

0354. Como era de se esperar, você me dá as costas, reacomodando-se instintivamente, cobrindo-se, inconscientemente, até o pescoço. Você é só cabelos. Ondas prateadas de um mar revolto, sem vento, sob a luz lunar de um céu sem lua. Estou bêbado de sono, prestes a me entregar. Queria escolher um fio, destes o mais branco, antigo, e, como guia, segui-lo, através dos seus anos, em tempos que ainda nem te conhecia... Infância, juventude, mocidade, tudo lá, enraizado. Durante o caminho, lufadas de uma terra distante inabitada senão por flamingos. Macadâmia. Desconheço o que seja, mas é meu perfume favorito. Você sabe, eu ficaria, de novo, mais quatro décadas com o nariz mergulhado nos seus cabelos, até que me afogasse na fragrância rósea e pestilenta do seu condicionador. 

0401. Vou sair devagar da cama, me desvencilhar do lençol com cuidado para não balançar o colchão. Vou embora agora, deste jeito, descalço, só com a roupa do corpo, pra nunca mais voltar. Dirão que fui abduzido, que fui alvo de um milagre, que fui tragado para o plano espiritual, como um escolhido, um santo... Antes, talvez, um teste de sensibilidade: se eu te desse um beijo agora, será que, de manhã, ao sentar-se na cama, após despreguiçar-se, colocaria a ponta dos dedos sobre os lábios, não perguntando-se indignada, ora, que espécie de eco é esse, mas tendo a certeza absoluta que, ao notar minha ausência, eu não estaria no banheiro e nem na cozinha, pois, isso que sente, tratou-se de um último beijo de despedida?

0423. Corpo espraiado. Pedras dilacerantes. O lençol está úmido e frio. Calma, é só o meu suor. Fui tomar água e voltei. Resolvi ficar. Eu sempre volto.

0444. Eu sempre fico, você sabe. O que você nunca soube é que sempre fiquei, durante todas essas noites, durante todos esses anos, acordado, como hoje, como agora, te olhando enquanto dorme. Porque tenho pra mim que, se deixar de te olhar, você pode morrer. As pessoas morrem assim, num piscar de olhos.

0525. Eis o primeiro passarinho a cantar. É um pardal. Um ordinário pardal. Sempre gostei de observá-los. Sempre os achei graça. Porém, é verdade, quando era criança acertei um deles com a intenção de machucá-lo. Ele ficou no chão. Está lá até hoje. E eu, até hoje, estou triste, debruçado com um graveto na mão.

0540. Alguma claridade infiltrou-se pelas frestas da janela. Sua pele ganhou cor. Um fio de luz surge por baixo da porta. Tenho a impressão de poder escutar todo o murmurinho deste lado do mundo. Descarga, armário, louça, talher. É um pardal que se sobressai: está se aprontando pra sair.

0555. Você se mexe. Os típicos movimentos que antecedem o espreguiçamento. Você vai acordar. Você vai acordar e, então, eu vou poder dormir. Armário. Salto-alto. Café.

0559. O rádio-relógio vai tocar. 

6000. Finjo dormir. Sinto seus movimentos através das ondulações do colchão. Você se sentou. Arrumou o cabelo, esfregou o rosto, soltou um suspiro. Se levantou. Deve ter olhado pra mim. Pensou "dorme como uma rocha". 

6001. Começo a perder o raciocínio. Meu corpo entrou em completo estado de relaxamento, de modo que só agora percebo como estava tenso. Meus músculos se afrouxam, meus membros ficam à deriva. Vou apagar. Perder a consciência. Muito tranquilo, muito satisfeito comigo. De agora em diante sou inútil. De agora em diante é... você... o sol... 

0602. Escuto vozes. Conheço estas vozes. Mas desconheço o idioma. 

6003. ...Os faróis costeiros... têm... a... melhor... vista... pro... mar...

domingo, 6 de junho de 2021

SINAL VERDE

Súbito, veio-me a ideia de cair no chão. 

Atendi-a tão prontamente que nem tive tempo de pensar em dar um tom à queda.  Quem viu, não poderia dizer ao certo se era caso de tropeço, desmaio, coração ou bala perdida. Caí de cara pro chão, porém, estou convencido que o artifício teatral para absorver o impacto dos joelhos ou da cabeça tenha sido meramente instintivo. 

Atravessado sobre uma das listras brancas da faixa de pedestre, num cruzamento do centro da cidade, eu sentia o cheiro de piche, e o asfalto, aquecido pelo sol das 13h, estava confortável. Me mantive imóvel, olhos fechados, e em momento algum tive vontade de rir. Na verdade era tudo legítimo, como tudo que é espontâneo. E era só nisso que eu pensava. Nesse meu ato espontâneo. Por que caí? Simplesmente porque tive vontade? Mas tenho vontade de tantas outras coisas, muito mais simples e menos humilhantes, e nunca as fiz... Teria dado então início a era das realizações?

Enquanto isso, crescia a movimentação ao meu redor. Rumores e buzinas eram abafados pelo meu estado de plena passividade. Fazia-se um outro silêncio, algo privado, particular, e a minha posição, como se quisesse escutar o subterrâneo, era favorável. Ansiava pelo momento que me arrastariam para o acostamento para a liberação da via. Eu estava a mercê de tapas, chutes e atropelamentos. E creio ter sentido algum prazer nessa expectativa. Contudo, ninguém ousou me tocar. 

Depois, lembro vagamente de um som de sirene distante. Tudo tornando-se ininteligível enquanto meus músculos se relaxavam e minha mente se esvaía... O sinal, verde, vermelho... inutilmente, por tantas vezes... 

Acho que dormi.

Acordei na ambulância. Um socorrista procurava algo com a luz da lanterna dentro do meu olho. Contive a vontade de despreguiçar, mas não a de bocejar.

Perguntou-me se eu estava bem. Respondi que sim.

Depois me perguntou o que eu havia sentido.

E eu respondi: nada.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

CORAÇÃO

Pensei ter encontrado um lugar silencioso pra ficar.
Contudo, este silêncio trouxe à tona um som que eu jamais poderia ter notado.
É um ruído surdo, constante, vindo de todas as partes.
Um rumor desses que se faz perceber somente quando cessa
Com a absoluta surdez.

Trilhões de células e estrelas agitadas
Bolhas estourando-se no fundo do oceano.
Eu escuto o murmurinho das máquinas e motores
A lamúria dos funerais
O grito dos partos
O uivo dos lobos
O frêmito das feiras, das festas
De todos os seres vivos se roçando...

Tudo em uníssono.

(Pensei ter escutado um riacho aqui perto
Mas eram os meus pulsos).

Tenho sono.
Tenho dormido mal.
É justamente à noite, à hora do sono
Um tambor, longínquo
Em alguma tribo isolada
Índios... fogueira... dança...
Sombras nuas projetadas na rocha
Dançando... Batendo... um tambor...
...Batendo... um tambor... sem parar...
Sem... Pa... Rar... ...      ... ...      ... ...

domingo, 11 de abril de 2021

ABSTRATO

Aos poucos, troquei as letras
Alterei as palavras
Desconstruí as frases...
Tudo com o único propósito
De não parecer falar um idioma...

Finalmente, com o desentendimento
Pude notar no meu tom de voz
Uma mistura angular de azul e ocre
Enquanto minha língua, dividida em várias pontas 
Desenrola-se, continuamente, em cerdas finas
Não para fora, mas para dentro de mim
Me lambendo as entranhas.

É um prazer que acaba, mas não termina:

Um eventual respingo branco
Ainda escorre pela superfície
Deixando o rastro de um gesto lascivo...
Embarco nele, para ir além dos limites de onde me enquadro
E, então, transbordo
Pronto para desbravar mundos
Onde não existam significados.

segunda-feira, 8 de março de 2021

FELICIDADE

Como que morta, e não caída
Mantinha-se deitada
Pronta para enraizar-se 
Em solo infértil.

Tinha a pele branca
De uma palidez só cultivada das sombras.

Quanto tempo leva para uma árvore se petrificar
Alguém perguntou.

Ela nao respondeu.

Não que ignorasse o sol, as flores
Ou o vento...

Naquele momento era preciso manter-se concentrada em não se mexer.

Era a felicidade:

Tinha pássaros aninhados em seus cabelos.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

POR UM MOMENTO

Por um momento pensei ter visto uma menininha séria.
Eu cortava caminho pela praça do centro
Quando a vi sentada num dos bancos 
Ao lado de dois adultos que conversavam.

Alheia ao assunto, aos pombos muito próximos
E a tudo mais que fizesse parte do mundo exterior
Ela era o modelo de circunspecção mais inadequado que podia existir naquele começo de tarde...

Fiquei perplexo.

Que questão poderia ser encarada com tamanha gravidade?

Certamente, essa intriga teria me levado à insônia
Se, no último momento, antes de perder a menininha de vista
Não tivesse me atentado ao engano:

Ela ria com as pernas!

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

QUANDO

Quando eu respirava fundo
Sentia cheiro de sangue. 
Meu próprio sangue.

Quando sangrei, nao senti nada.

Nunca entendi esse sistema de tráfego
Essas vias e veias entrelaçadas...

Eu tinha um nó na garganta
E uma bomba no peito.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

ALICE

A cortina da minha janela balança.
De alguma maneira esta brisa fresca abala
Os alicerces de toda a casa.
     Resquício ou prenúncio?
     Formação ou dissipação?
Que venha o desastre
No ápice
De um derradeiro
E apoteótico
Furacão.