quarta-feira, 7 de outubro de 2020

PAISAGEM VULGAR

Com grafite delimito o horizonte com um leve traço mais ou menos reto no meio da tela. E penso que já poderia parar por aqui. Um deserto de gelo me parece definitivamente decente pra pendurar em qualquer parede. Poderia acrescentar pegadas, o rastro de um trenó conduzido por huskies, um iglu... Tudo oculto por uma densa nevasca... Não. Chega de adiamentos. Vamos às tintas.

Começo, como de praxe, pelo céu, translúcido como a banheira onde mamãe costumava me dar banho. Um céu melodioso, de voz feminina, apaziguadora. A mão, em concha, depositava pingo a pingo a água no topo da minha cabeça, e a gentileza com que esses pingos escorriam da nuca à espinha, me fazia já entender o significado de proteção. Não podia ainda compreender o que mamãe falava comigo. Não compreendia o propósito daquelas esferas brilhantes se estourando, liberando perfume. Em resposta, eu movimentava meus membros agitadamente. E a água, em seu idioma universal, falava por nós dois. 
O sol, numa pincelada torcida, exatamente no meio do céu, é desproporcional, mas não incoerente. Tem a mesma cor vibrante do pato que dirigíamos, meu tio e eu, pedalando em câmera lenta para prolongar a navegação em torno de todo o lago artificial. Um passeio de poucas palavras, poucas nuvens, de sorvetes que se apressavam em derreter-se, de cachorros de pedigree, alegres por serem conduzidos... O som de apito intercalado com o de uma bola sendo constantemente chutada nos chamou a atenção para uma partida de várzea que corria logo ao lado.
Não me incomodava a ausência de gols. Nao me incomodava que os pedalinhos soassem enferrujados, e que os patos de verdade se bicassem na disputa por migalhas de pão. Me incomodava profundamente que o gramado do campo de futebol fosse mirrado, e que minhas mãos estivessem meladas.
Duas nuvens bastam. Mas não se resumem a simples montículos de algodão. Me entristece essa falta de nuance nas pessoas, pois ovelha nenhuma conseguiria se manter imaculada num pasto de terreno arenoso. Estas nuvens certamente passaram de raspão por alguma tempestade de areia no Saara, conseguiram, de alguma forma, reter parte do calor dos neons dos cassinos de Las Vegas, e depois descansaram sobre um campo de jasmins.
Com o pincel de cerdas macias, as montanhas cobertas de vegetação, próximas ao horizonte, confundem-se com o céu. O que pinto aqui é uma relação íntima, não muito duradoura, causada pela miopia e à alta densidade atmosférica. Os arbustos que nascem como frutos desta união, se mostram cada vez mais fortes e crescidos, conforme se aproximam do observador, e do riacho, descendo o vale. Pulemos o riacho, por hora. Quero aproveitar a sujidade do pincel à tudo que compete à flora: ao mato fresco à frente da casa, às folhas da macieira ao lado da cerca...
Uma casinha. Com porta, janela, chaminé. Perspectiva básica aplicada, um tanto duvidosa. Curiosamente, ao pintar as paredes desta casa, lembrei da Leila. Não exatamente da Leila, mas do cigarro dela. Precisamente do filtro, o último deles, que ficou depositado em um dos meus pires por semanas, após ela ter ido embora. Gostaria de dizer que é obra do subconsciente, mas é proposital que irei pintar o telhado da casa com a mesma cor do batom marcado naquela bituca. Conservei-a o quanto pude, juro. O quanto fosse possível extrair o aroma combinado de cigarro e batom. Era o hálito dela. Sim, era possível ter nojo de cigarros e ao mesmo tempo adorar a Leila. Até ter me perdido em conjecturas uma vez, pra nunca mais, nos caminhos que formavam as rachaduras da sua boca ali impressa. Aí joguei a bituca fora.
Gostaria muito de pintar aquelas maçãs. Aquelas cercas. O barco à vela. O cavalo à sobra. O caminho de terra, cruzando o gramado, indo do riacho à porta da casa. Porta sem porta, aberta, para qualquer um poder entrar. Ainda não me decidi se a lareira estará acesa, mas nunca vi chaminé sem fumaça. Certamente terminaria com o pincél mais fino. Tinta diluída com óleo de linhaça e terebintina, para os riscos escuros, em M, representando os passarinhos que gostam de tomar a frente do sol...

E, certamente, se eu fosse mesmo concluir este quadro, não iria fazer questão de assinatura.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

A MANCHA

Não sei o que me acorda. Se é um ruído, ou um sonho, ou algum desconforto, ou apenas o sono restaurado. Simplesmente, sem mover qualquer músculo, abro os olhos e desperto, calma e repentinamente. O tempo que a vista leva para se adaptar à luz do ambiente e focar numa pequena mancha de umidade na parede é o tempo necessário para eu me situar no universo, lembrar que possuo um corpo e um nome. Este corpo, antes inerte e inexistente apenas por ignorância, agora é, constatado meu reconhecimento, inanimado por pura contrariedade e desdém.

Não quero me mexer.

Estou em meu quarto, deitado em minha cama, virado para a parede, e esta parede é tudo o que meu campo de visão consegue alcançar. Sei que é cedo. A luminosidade esbatida da manhã se infiltra pelas fendas do meu quarto de sobrado e, ao atravessar a cortina cor de areia, empresta um tom mais quente ao azul-acinzentado da parede, tornando-a levemente esverdeada.
Sei que faz sol. Que é por volta das oito horas. Talvez nove. Não mais que dez. Sei que é domingo, pois se sustenta um murmúrio distinto que o configura como tal: o vizinho lava o quintal e rega as plantas com o esguicho de água da mangueira que, acidentalmente ou não, atinge o cachorro que corre de um lado para o outro, com as unhas resvalando pelo piso escorregadio. Sei que, a dois quarteirões daqui, um moleque está em cima da laje manobrando com admirável destreza sua pipa, fazendo-a mergulhar das nuvens em um ligeiro corte vertical, para, no último instante, antes de se chocar contra uma antena de tv (a minha antena de tv), mudá-la bruscamente de direção com um suave rasante, ascendendo-a, então, novamente, com um risonho farfalhar de rabiola. Sei que o vento se perfuma de flores artificiais enquanto refresca os pulsos da senhora que estende a roupa no varal. Sei de cor o bordão do feirante que vende laranjas na feira do bairro de baixo.

Sei que atrás de mim, na altura da cabeça, está o criado-mudo, e que, ao lado dele está o armário, e, do lado oposto desse, encostado à parede, está a poltrona, e ao pé da poltrona está a janela. Sei que, ao olhar pela janela, terei a vista de parte do aeroporto da minha cidade. E que a sucessão de pousos e decolagens dos aviões já se tornou banal até para os pequenos pardais que acabaram de sair dos seus ovos. Sei que, se eu me virar agora, irei me acomodar melhor, com um suspiro profundo de quem está prestes a se pôr de pé. Mas não iria me levantar de imediato. Antes ficaria olhando para o feixe de luz por onde as partículas de poeira flutuam como almas arrebatadas para o além. Antes ficaria absorto em alguma ideia indefinida, algo sobre a equivalência entre tempo e tempos, entre a vontade e o não-fazer, algo (caso fosse muito longe) sobre o esforço de não querer esforçar-se... Até ficar perdido, claro, e me achar, e me perder de novo, sem saber ao certo a quê ponto queria chegar. E assim, numa patetice de não sei quantos neurônios, talvez, por um impulso quase involuntário, me descobriria do lençol para mover as pernas - mero preâmbulo entre tantos outros que ocorreriam durante o dia: mais do que eu mesmo, meus pés saberiam que iriam tocar, dali a pouco, a solidez firme do chão, e já sentiriam, antes mesmo de mim, na camada intáctil das solas deles, o gostoso conflito entre a maciez e a aspereza do velho tapete do meu quarto. Mas, não. Não vou me levantar...

...Sei que em alguma caverna gelada um urso entrou em seu sétimo mês de hibernação. Sei que o entardecer nas planícies de Marte é pacato e lindo. Lindo, lindo, lindo...

Não, não vou me levantar.

Esta mancha... (como todas as outras manchas) possui uma fisionomia bestial. E cativa.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

FANTASMAS

Me demoro um instante. Três segundos, não mais que isso. Dedo ainda encostado no interruptor da lâmpada, porta prestes a ser fechada. Não, não é algo que eu tenha esquecido, está tudo aqui comigo na bolsa, já conferi: chaves, carteira, guarda-chuva... Porém, uma ponta do tapete está virada. E o controle remoto da tv, cujos números gastos dos botões se transformaram em símbolos próprios, está a fugir novamente por uma reentrância do sofá...

Não, não são olhos de diligência. São olhos de despedida.

Minha silhueta recortada pela porta está refletida no vidro do porta-retrato (e, com esforço, consigo me ver através, na minha versão mais jovem). E a caneta hidrográfica destampada sobre a mesinha está seca de tanto rabiscar o ar. E os fios entrelaçados dos eletrônicos se roçando sexualmente, trocando energia...

...Se caso eu não voltar, se caso houver um acidente e eu não voltar pra casa, é assim, exatamente deste jeito, que as coisas - as minhas coisas - ficarão.

A cama por fazer. As digitais oleosas no copo dentro da pia. O marcador de livro amassado. O pelo preso entre as lâminas do barbeador. A mancha redonda na toalha de mesa quadriculada...

E se encontrarem algo constrangedor?

Preciso me livrar de tudo que me liga a este lugar. Caso contrário, nunca conseguirei partir por completo, nunca conseguirei me concentrar no meu trabalho.

Apago a luz, fecho a porta. Parto.

Os orifícios do saleiro estão quase todos entupidos.

É claro que vou voltar.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

O MAR DE DE REPENTE

O sol das onze misturado ao ar gelado me fazia bem, e já era uma das melhores novidades que a viagem para aquela charmosa cidadezinha no interior do sul podia me trazer. Após perder meu brinquedo para os ramos altos da árvore que sombreava a casa de madeira onde estávamos hospedados, me dispus, não sei porquê, a subir aquela rua de terra. Subi devagar, cabisbaixo - não haviam trazido outras crianças. Na mão a parte do brinquedo onde se enroscava e liberava a hélice para percorrer o espaço era, então, inútil. Lembro que era uma ruazinha ingrime, disforme, de terra clara, quase branca, que a minha sombra crespa, à frente, maculava para a minha distração. Diria que as casas que ali ladeavam eram todas abandonadas, se de dentro delas não exalasse o cheiro do almoço sendo preparado. Soava uma espécie de música entre o farfalhar de arbustos trêmolos e a crocância das pedrinhas que eu pisava, com muito gosto, por sinal, porque reverberava por todo o meu pequeno corpo em prazerosa vibração. A certa altura já não sabia se aquilo poderia ainda ser chamado de rua, não havia mais casas e duvido que algum automóvel conseguisse chegar naquele ponto sem dificuldade. Não lembro se já sabia o significado da palavra penhasco, mas, lá estava eu, à beira, no topo.

Hoje me surpreende a ideia de ter achado naquele momento o mar e não ter me surpreendido com ele. Me esforço para evocar tal visão, que deveria ter sido, no mínimo, fotografada e impressa em cada partícula que compunha a alma inexperiente e despreparada de qualquer outro garoto naquela ocasião.

Breve clarão azul-dourado. Panorama infinito, bidimensional. Horizonte cortado com frieza e exatidão. O que eu poderia ter pensado? Não tinham me avisado! Acho que as nuvens foram feitas para confrontar essa geometria... Lá em baixo, manto brilhante... linhas brancas... arqueadas... desdobrando-se... para explodir... sonâmbulas, em pedras, talvez. Só estou supondo.

Talvez eu já o tivesse visto, ou previsto, e tudo não passava de um encontro marcado, e a lufada marítima nos cabelos fora nada mais que o cumprimento de um colega antiquíssimo, que esteve sempre presente...

Gostaria tanto de poder me lembrar daquele mar (o mar de de repente), e do rosto dos meus colegas de infância, do mesmo jeito como agora consigo, tão bem, tão detalhadamente, em termos de dimensão, cor, textura, peso... me lembrar da hélice...

...Da hélice de brinquedo que ficou pra sempre presa nos ramos altos daquela árvore.

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