Agora enxergo a superfície
Nua e crua, despida do que foi, do que deveria ter sido...
Pus os olhos a verem o que vêem e nada além
E vi que não se tratava mais de ver, mas de viver.
Nunca estive tão vivo quanto agora.
O agora, deste momento, deste exato momento, é puro e honesto.
É humilde e generoso. É infantil.
É natural como o vento e a água.
Alheio igual as plantas
Selvagem que nem os animais.
O agora, deste momento, é fugídio
E dura infinitamente...
De modo a tornar absurda a menor ideia do depois -
O depois, este que virá daqui a pouco, no segundo seguinte, é inconcebível, não existe.
Com que audácia, ou ingenuidade, esperam que eu compareça aos compromissos com data e hora marcadas?
Se digo que vou, é pra encerrar logo o assunto e não me aborrecer...
Porque agora eu só enxergo a superfície.
Sim, porta espelho livro céu
E eu, mal tendo tempo de saber quem sou, sou tudo isso
Madeira vidro papel azul...
Sou constantemente um recém-nascido
Que acaba de levar uma palmada na superfície da bunda
Que chora porque dói
Que abre os olhos pela primeira vez porque eles se abrem
E fica maravilhado com as luzes porque são bonitas...
Pai. Mãe
Com que presunção se dão ao trabalho de fazerem planos a meu respeito?
O que esperam que eu me torne
Se no segundo seguinte eu nem existo
Se no segundo seguinte eu estou morto?
*
Nunca estive tão pronto para a morte.
Sinto a mortalidade à flor da pele
Como uma dádiva, um presente
Um relicário apertado ao pescoço
Uma reação do estômago à fome.
E hoje eu já morri tantas vezes que até perdi a conta
Perdi o medo:
Não tenho mais medo
Estou solto. Liberto. Vivo!
Boa noite, não: adeus.
Quando me deito pra dormir
Durmo pra sempre.