quinta-feira, 21 de novembro de 2019

DA ÁGUA COMO REFLEXÃO

De vez em quando o barco balança fora do ritmo que vinha tendo, como se o lago inflasse num suspiro longo, desses que damos ao mudar de posição na cama durante o sono. O mesmo movimento que sentia quando tinha minha cabeça deitada sobre seu peito. As coisas, do meu ponto de vista, se elevavam de maneira surpreendente quando seu pulmão se enchia todo de ar. Além do chiado, eu escutava o amortecimento das batidas, e uma ou outra bolha de ácido se estourando. Era, para mim, o momento pleno de conforto e satisfação.
Hoje venho deslizar os dedos sobre a água do lago. Um pescador, longe à margem, traz a tona seu peixe, sem alarde. Eu brinco de tentar encostar o mais levemente possível a palma da mão sobre a superfície mais fina da água. Existe uma película, muito tênue, muito frágil... É difícil manter esta carícia de maneira constante, devido às suas suaves ondulações - ora perco o contato, ora sou invasivo. Enormes pedras de diamante caem pingando do peixe. Brilham com toda a intensidade do sol do meio dia. E como se já perdesse o jogo eu afundo minha mão de uma vez. Ela se torna turva, esverdeada, fria. A água fria no começo incomoda, mas depois se torna confortável, habitável. Entao vou afundando a mão aos poucos, mergulhando o braço até o cotovelo. Percebo que minha mão pode sumir completamente. Quero, com uma curiosidade infantil, vê-la sumir completamente. E sinto, de novo, o suspiro do lago, igual àquela respiração. Está me desafiando a solucionar, de uma vez por todas, o mistério que ronda as profundezas obscuras do além-peito...

Olho para a margem, certificando-me que ninguém esteja vendo.

O pescador foi embora.
                                    
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Graças a deus o peixe mordiscou. Não fosse isso eu teria sido tragado pelo lago. Não fosse isso eu teria caído no completo esquecimento... Nao foi fisgado, é verdade, mas suas mordiscadinhas foram suficientes pra me salvar. Por quanto tempo fiquei por lá, com os olhos presos na água? Um minuto? Duas horas? Toda a manhã? Não sei. Só sei que já não poderia ter voltado se algo não viesse intervir para nos apartar - que fosse o zunido de uma abelha, ou uma folha desprendida pra tocar meu nariz, ou um peixe que fizesse minha vara palpitar, muito levemente, enquanto come toda a minha isca. Não tem problema, tenho mais salsichas. Salsicha é o segredo, nunca falhou. Alguém está remando para o centro do lago, tão lentamente quanto se estivesse com medo de arranhar a água. Existe um sentimento de renovação em todas as vezes que arremesso a isca. Talvez todo o prazer da pesca consista nisto: jogar a isca. Na falta prolongada de ação, recolho-a, e mesmo que intacta, troco-a por outra, e me preparo para arremessa-lá no mesmo local, como se tivesse acabado de chegar. E é nessa hora que toda a natureza ao redor fica em suspenso, calada, para que eu possa me deliciar com o som da linha se desenrolando do molinete, enquanto a isca deixa no ar o seu arco infinito e perfeito, como um rastro de uma estrela cadente, que já mergulhou, há tempos, com suave borbulho. E então, aos poucos, os insetos, os pássaros e as rãs, e os ventos entrecruzados, vão retomando suas conversas, mas baixinho, que é pra não espantar os peixes... É uma mulher? Quando foi que o coração deixou de reagir ao tranco de um bom pirarucu? Hoje, nem sequer o menor frêmito, nem sequer a menor palpitação. Parece que os peixes também estão resistindo menos. Talvez sintam, pelo cordão que nos conecta, esta minha incerteza, e se deixam levar. Por favor, fiquem longe da minha isca. Lembro muito bem do primeiro peixão que peguei... Sim, há os que contam como primeiros, e só os primeiros é que contam, eu lembro... Sim, é uma mulher. Eles pensam que eu gosto da solidão. É porque eu deixo que eles fiquem pensando. Veja como o lago se enruga sem aviso,  como os círculos d'água se dissipam... Lá ia eu, novamente, a me prender com os olhos fixos na água... Através da água...

Peguei um pintado.

Este fim de semana, talvez, um dos pequenos vem visitar.
                                              

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Venham a mim, doces almas frágeis,  encontrar em meu leito o conforto para os seus corpos cansados. Pois é verão. Fechem os olhos e deixem que eu os conduza, tranquilamente, ao lugar reservado que escolhi para lhes apresentar o meu íntimo. Venham, em silêncio, em segredo, beijar a minha boca, sorver do meu corpo tudo o que seja fluído. Venha, mulher, não poupe o fôlego. Beba-me bastante, até que seja o bastante. Depois da embriaguez, o sono, e o mundo que você quiser. E então fique, para dormirmos juntos, você, a noite, o inverno e eu, abraçados, no mais absoluto silêncio, sob uma manta de névoa e vagalumes.  Homem velho, de olhos anuviados, por quê tanto me olha, se nao me deseja? É da minha vulva que tira o peixe que irá comer. Tem um pontinho escuro parado no céu... Não, está se movendo devagar, muito devagar. Vai se chocar com a nuvem...
Gosto principalmente das crianças, que  são sempre nuas e estridentes, e se jogam com seus bracinhos abertos, bracinhos capazes de me abraçar e de me absorver por completo. Um dia, quando eu morrer, terei sido absorvido pelos bracinhos de uma criança nua. Terei entrado pelos seus poros, até chegar em seus músculos. Ela se tornará uma excelente nadadora, vencerá competições, enquanto meu cadáver é lama, lodo, musgo.

...Ressurgiu. É um avião.

Mulher, eu também te amo, e agora seus cabelos são algas dançantes.

                                             
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quinta-feira, 17 de outubro de 2019

VAGABUNDO

ficam me parando nas ruas
perguntando se preciso de alguma coisa
dinheiro comida trabalho banho
respondo sorrindo muito obrigado mas não
aí noto que às vezes a pessoa fica um tempo parada olhando eu ir embora
enquanto tento me concentrar à questão que vinha tendo
uma questão aliás de muita importância
de anos de resolução
e de grande importância
muito muito grande mesmo
caralho esqueci de novo
filho da puta

segunda-feira, 6 de maio de 2019

O OBSERVADOR DE AVES

Cortou o ar numa longa linha horizontal,
até sumir, adiante, entre o ramo das árvores altas.

Sei que não era um pombo,
porque já vi um pombo antes
e aquela ave em nada se parecia com um pombo.
Sei também que nao era um pato,
não era um pelicano, nem uma garça, tampouco um urubu.
Talvez tenha sido um gavião, ou uma águia...

Nao sei... Não posso dizer com certeza,
nao tive tempo de ver-lhe detalhes!

...Que bom.

Adiante, além das árvores altas,
deixei a ave me escapar,
para ir se acolher no Reino Encantado do Desconhecido,
onde encontram-se reunidas,
salvaguardadas perante minha ignorância,
todas as outras coisas que ainda não me alcançaram a ciência...

Deixa-a estar, assim -
Ave Ignota -
lembrança breve de um vulto tomado por asas,
você foi todas as aves que nunca vi.