quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

ESPECTRO

Sentado, algo toca, de leve, em minhas costas, fazendo com que todo um evento remoto (algum caso delicioso envolvendo árvores e mangas) se perca, dissolvendo-se brusca e violentamente, no estrondo de uma onda quebrada, cinzenta. Não olho de imediato no que a cabeça se antecipa: os olhos, custosos de desprenderem-se do ponto onde há muito se haviam fixado, por uma breve dessincronia de interesses, se atrasam, mas chegam. E, ai!, doloroso choque retínico!: o espectro do arco-íris colocado simetricamente lado a lado, inflado, formando uma brilhante esfera salpicada de areia, ainda reage em seu último giro pós-cataclísmico. Parou. Como que do nada, surgem, qual desjeitosas garras, duas rosadas mãozinhas rechonchudas, das quais o dono ignora minha estatual presença. Depois corre, cambaleante, abraçado a algo maior que si, como seu próprio mundo, que lhe cobriria toda a vista, se uma tênue transparência não lhe concedesse vislumbrar o panorama distorcido a sua frente: a estranha imagem mais ou menos distante, variavelmente colorida, de uma mulher e uma menininha. De uma mulher impacientemente animada, de vestido e cabelos esvoaçantes, e de uma menininha sentada, com seu chapéu fugidio preso às costas, por uma fita no pescoço, uma verdadeira princesa, colossal, impiedosa, cercada por ruínas de castelos que destroçara pelo prazer único de senti-los desmanchando-se entre seus inexperientes dedos (concedeu trégua, afinal, paralisada pelo frio movimento do sorvete escorrendo agora pelo seu braço, seguindo, agora, em pingos, pela dobra da perninha). O menino, ao que parecia disposto a entregar aquilo que a mulher já vinha dele recebendo desde longe, na esperança palpável do invisível, interrompe-se, excitado, no último instante, cedendo ao ímpeto infantil de antecipar o que está prestes a acontecer. Veja, mamãe, eu também sei fazer, diria ele, se soubesse falar, dizer estas palavras. Mas a bola mal sai de suas mãos. A mulher tenta pegá-la ainda no ar, com desejo de posse intensificado, algo desesperada, você trapaceou, trapaceou, diria ela, se não estivesse ignorando o entusiasmo exagerado, a alegria pedinte de aprovação que o filho demonstra – sim: filho, porque tem, mesmo de longe vê-se, tem os mesmos olhos cinzas, caídos -, para lançar-se cegamente ao objeto de desejo. A bola foge de suas mãos para ir quicar perto da menina - agora será sua vez de emergir do transe: um transe reminiscente? Amniótico? De uma vida passada? Mas qual? Qual fora seu nome, princesa? Em que altas torres de intransponíveis castelos fora trancafiada? Não, não...: deixava-se levar apenas pelo fascínio do momento, do movimento hipnotizante de uma mágica, que é a vida, simplesmente a vida, pulsando a cada segundo, enquanto um estado físico se transmuta a outro, e uma temperatura opositora ativa-lhe gradualmente os nervos dos membros. A bola quica novamente, agora mais perto. Um leve sobressalto, um piscar de olhos, um abrir e fechar de cortinas, e o passado é apenas um rastro róseo, meladiço (meladiço como mangas maduras). A mãe apanha a bola e sorri. Prepara-se para algo. Mas eu não quero ver. Eu devia estar sozinho. Quem, além de mim, vem à praia num tempo desses? Meu pescoço dói de tanto olhar para trás. Mas não posso evitá-lo, ninguém pode. E então, quem diria, um chute certeiro, sim, um excelente chute, e a bola inicia sua pretensa jornada interestelar. Uma imagem realmente impressionante. A bola, de cores cada vez mais atraentes, parece poder chocar-se a qualquer momento na sólida bidimensionalidade de um céu uniformemente cinza. O menino ergue a cabeça, mas o queixo, pesado, não a acompanha. A menina fica a apontar com o dedo, enquanto entoa uma sílaba prolongada e cadente, mera nota propulsora que determinará, ela sabe, segundo seu fôlego-motor, o limite da ascendência. E continua subindo, subindo, subindo, como se nunca mais fosse parar. E quanto mais alto sobe, mais enche nossos peitos de algo que não poderíamos descrever. Algo que nos torna cada vez mais leves, que nos liberta do fardo do corpo – o peso que é o próprio corpo -, com suas mazelas, limitações, superficialidades... E não há mais dor, há apenas o voluptuoso desejo de seguir em frente, distanciar-se ao máximo, subir, sumir... Será isso a felicidade? A sensação de morte? E essa leveza que é infinitamente mais leve que o ar começa a nos preencher o estômago de modo que não haverá outro jeito senão uma hora explodirmos! E o coração... ah, o coração é apenas (A mãe, apenas olhando para o alto, finalmente orgulha-se de si mesma, por ter conseguido, depois de tantas tentativas, conceber seu fenômeno tão divino e particular). Não!: existir é mais do que isso. Pois algo transcende para além da euforia, da sublimidade. Pois a bola continua subindo, subindo e subindo, e agora todos nós estamos com ela, estamos nela, somos ela. Mas eis que na iminência de tornarmo-nos um novo astro, a gravidade, que sempre vence, nos confronta. Estamos perdendo velocidade. Estamos perdendo força. Iremos parar. Sim, é certo, estamos parando, mas, estranho, parecemos alcançar o alto de uma montanha, o pico de uma montanha extremamente íngreme, escorregadia, gelada. Estamos chegando e sabemos que, uma vez lá, tudo estará perdido. Tudo o que havíamos conquistado se desvanecerá. Tudo o que havíamos reunido se desmoronará numa avalanche devastadora. E lá estaremos nós, junto aos detritos. Estamos chegando, estamos parando. Frio na barriga. E mais um pouco. O limite é algo delicado, sutil, efêmero. Vamos chegar. Mais um pouco. Um pouco mais. (E neste momento me vem à cabeça a imagem de Virgínia sentada num galho alto de um pé de manga. Ela está me chamando, me atirando, lá de cima, tiras de cascas recém descarnadas pelos seus ávidos e doces dentes - dentes entre os quais, vez ou outra, amputando subitamente uma palavra, levava suas unhas em forma de pinça para desprender um pelo impudente. Neste momento o sol havia conseguido penetrar a frondosa folhagem da mangueira, emprestando-me gentilmente um de seus fugidios raios, como um desses flashes eternizadores de instantes, para que eu pudesse imprimir na memória o momento obsceno em que um fio de suco salival se arrebentava brilhantemente entre seus lábios. Seus ungidos lábios.

Quando a bola caiu amortecida pela areia, tomando um rumo inesperado devido a deformidade das pequenas dunas daquele pequeno deserto, eu já estava olhando, de novo, para o mar.

As ondas, uma após a outra, cinzas e brancas e borbulhantes, sabiam pronunciar meu nome. Reivindicavam minha paternidade.

Uma delas veio até mim. Tocou-me no ombro, finalmente. Chamando-me para ir embora.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

A NÉVOA

Meu andar é lamacento
Minha voz é ancorada.
Estou dentro de uma névoa densa
Maciça
De onde um simples aceno de mão exige tempo
E esforço.

Fora da névoa tudo corre bem.
As pessoas andam, comem e dormem
Com fluência.
Parecem ligadas umas nas outras
Por uma corrente, um fio, um rio.

Um rio?

Minha respiração é estreita
Minha vista, nublada.
Enxergo através de um véu sujo
Viscoso
Que faz as formas perderem o contorno
E as pessoas se fundirem nos objetos
Em breves manchas vultuosas.

Que horas são
Sempre me pergunto.
Então olho pro relógio
E percebo que estou no mesmo minuto.

E percebo que 
Estou no mesmo minuto.

Esta névoa, às vezes, parece fazer-se demasiadamente úmida
Oleosa.
Não sei se afundo ou se boio
Em todo caso, deixo-me levar.
Porque a névoa me conduz
Enquanto transito nela.
Não sei aonde ela me leva
Mas sei aonde estou indo.

Escuto vozes distantes
Amortecidas, amordaçadas.
Pessoas falam comigo
E suas palavras, no meio do caminho
Estinguem-se, disformes
Sem significado.
Quando me encontram
Já são fumaça, viram névoa.

"Você sabe onde está a planta?" 
Isabel pergunta.
Mas me demoro a responder.
"Você sabe onde está a lâmpada?"
Ela pergunta, de novo.
E, sem resposta, vai embora, sem paciência.
Mas eu a havia respondido
De alguma maneira, sei que havia...

Estou dentro de uma névoa
Escura, cálida
Que me envolve
Como uma membrana, uma placenta.
Anseio por algo
Um rompimento
Um recomeço...

E, então, ocorre
De uma hora para outra
Indolor
Como uma coisa muito simples de ser resolvida
De eu sair da névoa
E sentir-me... assim, algo expelido...

A clareza sobre as coisas é tamanha
Que a névoa, então, já é parte do passado
De um passado longínquo
De um passado que eu não participo
De um passado que eu não lembro
De um passado que eu duvido sequer ter existido...

Bom dia. Como vai?
Ouso dizer em voz alta
Para que eu seja escutado
E retribuído...
E o que eu ouço é tão claro
Cristalino
Quanto decepcionante...

bom dia bom dia bom dia bom dia 

Algo não está certo
Algo não se encaixa...
Me pego olhando pra trás
Pra um lado, pro outro... procurando...
Sinto falta.
Ouso dizer que é saudade...
Saudade?
É, é saudade.
Mas do que? De quem?

Sorrio, enfim.
Mas só eu sei do que se trata este sorriso.
É claro!
Aliás, veja como meus dentes estão sujos
Corroídos, podres...
Mas ainda assim é um sorriso.

Não há óleo, nem lama, nem fumaça.

A névoa sou eu.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

ASSOMBRAÇÃO

Alguém muito parecido comigo
Acena pra mim, me chamando
A cada esquina.

Eu aperto o passo
Passo reto
Nem olho pros lados.

Depois, não sei bem o quê
Mas algo sempre me parece ficar caindo pelos furos do bolso.
Tateio, procuro, avanço, adentro
E acho senão eu mesmo
Adverso, estranho, intruso, ao avesso...

Nunca perdi nada.
Nunca pedi nada.
Eu carrego uma mala vazia
Sequer tenho documento.

Dessa forma, sigo sem olhar pra trás
Pois, se não vejo o rastro, o rastro não existe.
(Ademais, meu bolso nem está furado...)

E assim, sozinho no meu quarto completamente escuro
Eu fico de olhos abertos.
Se pisco, é por capricho
É pela estranheza
Por essa sensação alheia...

Quem eu seria se...
É inconclusivo.

Porque pego no sono
Ou não pego
Não sei bem
Mas o fato é que tenho dormido muito bem.