quarta-feira, 17 de outubro de 2018

CAPIVARAS

Atravessei mais um dia.
Passei entre a multidão das horas
Empurrado e acotovelado pelas setas dos ponteiros...
E, olha aí, meu coração ainda continua batendo
Forte como um novilho!
Isso me surpreende, admira e compadece
De uma maneira que só poderia explicar mal...
Mas antes de dormir levo a mão ao peito
E sinto que meu coração entrou para a irmandade dos que ignoram e debocham.
Eu adormeço, enquanto ele permanece acordado
Indiferente a todas as minhas vontades.
Ele está em comunhão com a erva que irrompe da rachadura do asfalto
E com a família de capivaras que transita 
Nas margens do rio Tietê.

sábado, 29 de setembro de 2018

AUTORRETRATO DE UM ELEFANTE TAILANDÊS

Me dividi em pequenas formas geométricas
Me isolei em linhas retas, oblíquas e curvas
Que, reunidas e ligadas umas às outras
Se assemelham à figura que me olha de volta no espelho.

Me elogiaram pelo resultado
Com aplausos e recompensas.
De maneira que hoje repito o mesmo desenho
Várias vezes, todos os dias
Sem sequer precisar mais do espelho.

São apenas linhas retas, oblíquas e curvas.

quinta-feira, 5 de abril de 2018

CONTRASTE

Estou entre o preto e o branco
Transitando gradualmente
Pela escala infindável dos tons de cinza.
E isso é ser tão decisivo quanto um céu nublado.
Pronto: sou nublado. Opaco.
A luz intensa me cega
Assim como a total escuridão.
Estou num momento fugídio
Capturado entre o clique do interruptor
E a lâmpada que acende.
Entardeci, e assim fiquei, sem esperar
Camuflado pelo lusco-fusco.
Sou um lago recôndito
Cheio de lágrimas indistintas.
Tristeza e alegria vêm mergulhar em mim
Atirando-se em magníficos saltos ornamentais
Sem saberem nadar.
Sou a brisa tépida vagando na madrugada.
Invado quartos, pelas janelas entreabertas, enquanto todos dormem.
Aliso suas faces, balanço a cortina
Afago o fogo da vela, sem afetação.
Não morro, não mato. Não inspiro, não refresco.
Trago o ar estagnado dos casebres abandonados -
O ar que falta aos últimos suspiros.
Depois vou embora, sem nada cerrar, ou escancarar
Deixando pelo quarto um leve olor de hálito do pântano.
Estou entre a insanidade e a lucidez.
Não durmo, nem acordo.
Permaneço em estado de sonolência
No meio de um confronto
Onde os opostos se chocam.
Estou sendo linchado agora, por acidente.
Mas a dor gerada pela surra constante me põe em estado anestésico.
Nem fantasia, nem realidade
Nem presença, nem ausência
É outro plano, mal sintonizado, de leve oscilação
Onde os mortos revivem e a infância se perde.
Tudo e nada. Nada e tudo.
Gêmeos siameses, filhos de mães diferentes
Andam ligados, lado a lado, em perfeita coordenação.
Tenho ganas de assassinar, dividir a carne e a dor.
Tenho vontade de abraçar todo o mundo, muito calorosamente...
Ou tudo. Ou nada.
Mas a faca embotou-se ao relento.
Mas os braços são curtos demais.
Ou tudo, ou nada. Repara:
Sou um mosquito perfeito e asqueroso
Pousado sobre o ídolo sagrado.
Desconheço o que seja céu e inferno
E assim me torno sublime e eterno.

sábado, 17 de março de 2018

CREPÚSCULO 2

Uma sombra caminha à frente
Deslisando disforme sobre obstáculos
Pedras, gravetos, excremento.
Silente entre as folhas mortas
Penetra o riacho
Para logo emergir ilesa, seca.
Queria ter esses braços
Essas pernas longas
Esses ombros encolhidos...
Porque a sombra está à frente
Caminhando de maneira decidida
Se estica, estranha, até alcançar a dobra do horizonte.
Mas o sol se põe.
A sombra enfraquece
Vai sumindo, me perdendo
Ao desprender-se, aliviada, dos meus pés.

sábado, 24 de fevereiro de 2018

CALENDÁRIO

Lá se vai mais um domingo
Caindo com o fim da tarde.
Nada fiz
Senão esbanjar tempo
Como o gato que acorda
Despreguiçando-se num gesto largo
Pra prorrogar a sesta.

E amanhã tudo retorna de novo:
Os mesmos passos
As mesmas pernas
Os mesmos remendos no asfalto
Por onde irá passar, em fila
A marcha de tudo
A caminho do nada.

(Tudo roda, gira e translada -
Os ponteiros, os astros
E os transportes nauseabundos
Movem-se conectados
Pelas mesmas engrenagens.)

Mas não penso nisso.
Tampouco sobre o frescor do líquido a descer pela garganta...
Não sei exatamente em que penso
Enquanto meus olhos passeiam
Pelos números do calendário
Pendurado na parede da cozinha.

Apenas deixo mais um copo sujo no fundo da pia
Onde vão se acumulando
Desordenadamente
Como um novo jogo de tabuleiro
Cuja regra é não haver lógica
Cuja lógica é não haver regra.

sábado, 20 de janeiro de 2018

TATUA{DOR}

Confesso que sorri
Senão um sorriso consternado
Ao notar o pequeno coração solitário
Talhado no caule daquela árvore.

Quem fez? Pra quem foi feito?
Terá o gesto superado a casca
E se entranhado além, até as raizes?

Confesso ter procurado
Algo pontiagudo o bastante
Para, num golpe de posse
Sulcar-lhe o centro do órgão
Com um par de letras iniciais -
Uma minha, uma sua.

Nada achei
(Nem canivete, nem agulha)
Ficou como estava...

Apenas continuei meu caminho
E, em meio a tantas outras árvores
Me perguntei - agora com um sorriso enternecido -
Se era possível desenhar corações
Sem sentir ou causar dor.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

FEBRE AMARELA

Há um surto de febre matando as pessoas
Culpa dos macacos, acusam...
Creio estar doente também
Mas minha febre já dura anos
Vem acompanhada com crises de alucinação
Um delírio recorrente em forma de mulher
Uma deusa africana
Que surge de repente
Vestindo uma camiseta estampada
Escrito hakuna matata.

Para Cris.

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

VERTIGEM

Teus olhos induzem ao suicídio
Me inclino sobre eles
Como à beira de um abismo
Querendo pular.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

CREPÚSCULO

Assisti pela janela
Passar o desfile alegórico das nuvens -
Sólidas nuvens - carregadas de sol e vida
A transmutarem-se em toda espécie de animais fantásticos.

...

Enfim, tardou.
Toda a fauna extinguiu-se
Ficou  só o céu negro
Fazendo do vidro, espelho
De onde duas estrelas opacas refletem
Piscando fracas
De sonolência.