segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

TEXTURA

Deixei de lado o gosto
Para explorar a textura:
Orelha, aréola, nuca, ânus
Nervos eretos da nádega
Nó do dedo, do umbigo
Cotovelo, joelho, axila...

Com a ponta da língua 
Tateei cada pelo supostamente amputado.
A vagina, antes do centro
Crespa como tua voz
Encheu minha boca de água
E não senti mais nada.

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

sábado, 10 de dezembro de 2022

CARPE DIEM

Agora enxergo a superfície
Nua e crua, despida do que foi, do que deveria ter sido...

Pus os olhos a verem o que vêem e nada além
E vi que não se tratava mais de ver, mas de viver.

Nunca estive tão vivo quanto agora.
O agora, deste momento, deste exato momento, é puro e honesto.
É humilde e generoso. É infantil.
É natural como o vento e a água. 
Alheio igual as plantas
Selvagem que nem os animais.
O agora, deste momento, é fugídio
E dura infinitamente...
De modo a tornar absurda a menor ideia do depois -
O depois, este que virá daqui a pouco, no segundo seguinte, é inconcebível, não existe.

Com que audácia, ou ingenuidade, esperam que eu compareça aos compromissos com data e hora marcadas?
Se digo que vou, é pra encerrar logo o assunto e não me aborrecer...
Porque agora eu só enxergo a superfície.
Sim, porta espelho livro céu
E eu, mal tendo tempo de saber quem sou, sou tudo isso
Madeira vidro papel azul...

Sou constantemente um recém-nascido
Que acaba de levar uma palmada na superfície da bunda
Que chora porque dói 
Que abre os olhos pela primeira vez porque eles se abrem
E fica maravilhado com as luzes porque são bonitas...

Pai. Mãe 
Com que presunção se dão ao trabalho de fazerem planos a meu respeito?
O que esperam que eu me torne
Se no segundo seguinte eu nem existo
Se no segundo seguinte eu estou morto?
                                  
                                 *

Nunca estive tão pronto para a morte.
Sinto a mortalidade à flor da pele 
Como uma dádiva, um presente
Um relicário apertado ao pescoço 
Uma reação do estômago à fome.

E hoje eu já morri tantas vezes que até perdi a conta
Perdi o medo:
Não tenho mais medo
Estou solto. Liberto. Vivo!

Boa noite, não: adeus.

Quando me deito pra dormir
Durmo pra sempre.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

sem título

chuva no vidro da janela
rastros de luzes escorrendo
na tentativa de fundir... ou fugir?
não sei, tá tudo embaçado, não vejo nada
na-da
nada do lado de lá
nem de cá.

domingo, 9 de outubro de 2022

NUVENS

quando vi, não era mais uma nuvem
era um cão:
o meu cãozinho.
e eu estava completamente apegado a ele
com todo o amor que eu tinha
com toda a imaginação que me restava...

céu de ondas dispersas
tarde escura, caiada
carnificina

eu choro, e me pergunto:

para onde é que deus está levando os meus amigos?

domingo, 28 de agosto de 2022

GRAND CANYON

As cigarras, notando minha presença
calaram-se todas ao mesmo tempo
como um disparo surdo.
Eu, engolido pelo silêncio
Ia diminuindo de tamanho
conforme se me apresentavam as estrelas...

Foi assim que eu desapareci
entre os desfiladeiros...
Os longínquos
os ensolarados
os impossíveis desfiladeiros 
do Grand Canyon.

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

ATLÂNTIDA

Mudei de casa. Agora moro num barco.
Sem endereço, sem coordenadas.
Se quiser me visitar
procure o ponto mais distante entre os continentes.
Eu estarei lá
procurando me distanciar cada vez mais 
de mim.

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

PALATO

Perdi o apetite pelas coisas doces
quando percebi que é de doçura que se fazem as ilusões...
agora prefiro o amargo
o ácido.

Dou um rio do mais puro mel
por uma gota de fel
para senti-la indubitavelmente.
Troco uma carícia nos cabelos
por um corte profundo na carne
para tê-la por definitivo...

Que delícia acordar com uma mordida feroz
um balde de água gelada
jogado na cara!

Mas, nada perdura...
...Onze mil quinhentos e vinte e nove beijos insípidos
e a vontade única de continuar assim
dormindo...

Embebeda-me, então, com tua lucidez.
Quero a bile negra
e corrosiva. 
Quero o sabor real do sangue
o sentido concreto da lágrima 
do suor...
Quero tudo que seja fluído
e intransitório.
Quero o muco acre e viscoso
transbordando de você 
direto na minha boca.

sábado, 6 de agosto de 2022

3am

ponteiro de relógio 
pingo de torneira
estalo de porta 
rangido de cama
ponteiro de relógio
pingo de torneira
estalo de porta
rangido de cama
ponteiro de relógio
rangido de torneira
estalo de porta
pingo de cama
rangido de relógio
estalo de ponteiro
pingo de porta
torneira de cama
porta de relógio 
cama de torneira
pingo de rangido
estalo de ponteiro
ponteiro
de relógio 
rangido de porta
relógio de porta
cama
ponteiro de relógio
pingo de torneira
estalo 
de
pingo 
de relógio 
estalo de torneira
pingo 
de cama
de ponteiro
pingo de pingo
pingo
pingo
e estalo
e pingo
e o relógio
e a torneira
e o rangido
e o escuro piscando pra mim com dois olhos esbugalhados

sexta-feira, 22 de julho de 2022

MAR ABERTO

Meu coração agora pouco se agita.
Estou calmo.
Como se o corpo fosse pra si o próprio regaço 
Um barco ancorado sem ânsia de ir ou vir
Porque, agora, veja, é o mar quem navega em mim.

Estou em mar aberto.
Quando olho à volta
A linha ininterrupta do horizonte me cerca 
E me abraça, mas não de surpresa.
Tenho todos os lugares para não ir
E estou bem com isso.
Veja: o horizonte é só uma paisagem
E a paisagem, que vejo, sou eu mesmo 
Sou eu na minha melhor maneira
Com meu melhor penteado -
Sou eu quem me abraça
Num gesto romântico 
Pitoresco de se ver.

E quando eu durmo torto no sofá com o filme ainda pela metade
É um sono tão gostoso, tão bom...
O filme também era bom
Mas... o sono... É um sono sem sonho.

Não me olhe em dúvida quando chegar da festa
Eu estou bem, garota 
Nunca estive melhor.
O sol se pôs em mim
E eu me contentei
E dormi.

Só estou dormindo.

E eu durmo contente
Apesar de parecer, agora, com um cadáver
(Um belo cadáver), estou contente.
Já me disseram que ronco
Mas acho que era zomba.
Então me deixe dormir
E roncar
Ou, se quiser, pode me acordar
Não tem problema
A gente conversa e toma um café...

A felicidade, garota, é discreta.

quarta-feira, 20 de julho de 2022

sexta-feira, 15 de julho de 2022

PASSEIO NOTURNO

com a noite surge a lua
as estrelas
os travecos

um cachorro manco
que vinha atravessando a rua
cruzou por mim
sem sequer me olhar nos olhos

a pata da gata

acordei ereto duro igual pedra
lago cachoeira pingo da torneira
não tem jeito
espuma de colchão de sofá
de barbear
são mais macias agora
insisto em não olhar
e me vejo
pé de galinha
olheira
ranho
pelo
ralo
excremento
coceira 
rabo
sujo
pata 
gata
beijo
tchau.

quinta-feira, 14 de julho de 2022

TREM

Rente aos trilhos do trem
À borda dos vagões deixados abertos
Aguardo          o som do apito
Com alguma mão a me puxar
Clandestinamente.

DEGRADÊ

À sombra do quarto 
As cores tornam-se acinzentadas, sonolentas...
Uma mulher poderia camuflar-se facilmente 
Entre as almofadas.

quinta-feira, 23 de junho de 2022

dEfeitos

Comprei um espelho.
Mais tarde percebi o problema:
O reflexo era distorcido.
Mas acabei ficando com ele assim mesmo...

véu ao léu

desculpa, não quero mais sair.
hoje vou ficar em casa à toa
igual esta cortina transparente

segunda-feira, 20 de junho de 2022

quinta-feira, 26 de maio de 2022

segunda-feira, 16 de maio de 2022

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Póstumo

Talvez fui eu quem morreu aquele dia
Quando levaste consigo as memórias que tinhas de mim.
E eram elas tão fortes, tão tuas
Que eu não podia ser senão nelas.

O que ficou, agora é eco.
Resíduo de consciência escapado de última hora
Voejando dentro de um corpo vago
Repetindo-se nos cantos dos espaços ocos...

Saudades... de quem?

Emprestamo-nos um ao outro
E foste embora
Sem me devolver.

sexta-feira, 6 de maio de 2022

Plânctons

À noite, enquanto você dorme e sonha
as baleias vêm à superfície
realizar os seus saltos mais altos...
Cheias de energia e desejo
até abanam as barbatanas
na tentativa de se impulsionar, alçar voo...
E, então, abrem bem a boca
ao máximo que podem
para abocanhar um punhado de plâncton -
desses plânctons luminosos que pairam no ar...

A DESCOBERTA

- Papai, como se formam as ondas?
- As ondas?... Aquelas ondas?
Ora, meu filho, as ondas são formadas através...
Dos saltos das baleias... Claro!

terça-feira, 3 de maio de 2022

CAFÉ

Café... Só tomo de olho fechado.
É o beijo de língua bem dado
Que me acorda pela manhã.

FANTASMAS

Calma, não era ela.
Era só o perfume dela
Em outro alguém...

40

O cometa Halley passou e eu não vi.
E quando ele passar de novo, eu já estarei morto...
Tudo bem, não tem problema.
Em meio a códigos binários eu encontrei uma pessoa. Uma amiga.
Já fazem 15 anos - que valem por toda uma vida.
É pura sorte. 
É como olhar pro céu, no ponto certo, na hora certa. E saber...

Duas Milenas, nem em milenios...

NOTURNO

Na calada da noite
Onde os sonhos se consomem
Um cachorro late, extremamente distante...

sexta-feira, 29 de abril de 2022

segunda-feira, 25 de abril de 2022

sábado, 23 de abril de 2022

P&B

A praia, assim, nublada
  Parece em preto e branco...
...Até você ressurgir das ondas.

segunda-feira, 18 de abril de 2022

A PARTIDA

Foi tufão, ciclone, brisa, alento...
Morreu em paz, foi feliz
Até o último giro do catavento...

E-MAIL:

Amiga, o carteiro morreu.
Morreu assim que deixei
de rezar por sua vinda...

CONDUÇÃO

Vou parado. O ônibus não anda.
A cidade pensa que passa.
E o único a se mover é o sol se pondo...

DOS SERES IGNÓBEIS

Na profundeza escura
e gelada do oceano
especulam... sobre ti.

AQUÁRIOS

Hey, peixinho, nade!
Do mar que nos reparte
Ficaste com a maior parte!

CONVERSA DE CABECEIRA

Quando meu criado-mudo
Resolve abrir a boca
Sai um monte de história...

sábado, 16 de abril de 2022

NÃO SÃO PIPAS

Esta linha...
Esta linha que liga o menino à pipa...
Não é uma linha: 
É a fé... por um fio.

AS ONDAS

Para escutar o mar dentro da concha
É preciso ter olhos fechados
E janelas abertas...

PEGAÇÃO

No aperto da estante de livros
Os personagens aproveitam
Pra se roçarem uns nos outros...

DO VERBO DESGRAMAR

Quem carpiu aqui?!
Disgramado
Infinhei o pé na lama!

RALO

Compus um haicai
Durante o banho.
Saiu moiado...

A FRESTA

Era só pra entrar um arzinho
Refrescar a testa
E a lua invadiu fazendo a festa.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

ESPECTRO

Sentado, algo toca, de leve, em minhas costas, fazendo com que todo um evento remoto (algum caso delicioso envolvendo árvores e mangas) se perca, dissolvendo-se brusca e violentamente, no estrondo de uma onda quebrada, cinzenta. Não olho de imediato no que a cabeça se antecipa: os olhos, custosos de desprenderem-se do ponto onde há muito se haviam fixado, por uma breve dessincronia de interesses, se atrasam, mas chegam. E, ai!, doloroso choque retínico!: o espectro do arco-íris colocado simetricamente lado a lado, inflado, formando uma brilhante esfera salpicada de areia, ainda reage em seu último giro pós-cataclísmico. Parou. Como que do nada, surgem, qual desjeitosas garras, duas rosadas mãozinhas rechonchudas, das quais o dono ignora minha estatual presença. Depois corre, cambaleante, abraçado a algo maior que si, como seu próprio mundo, que lhe cobriria toda a vista, se uma tênue transparência não lhe concedesse vislumbrar o panorama distorcido a sua frente: a estranha imagem mais ou menos distante, variavelmente colorida, de uma mulher e uma menininha. De uma mulher impacientemente animada, de vestido e cabelos esvoaçantes, e de uma menininha sentada, com seu chapéu fugidio preso às costas, por uma fita no pescoço, uma verdadeira princesa, colossal, impiedosa, cercada por ruínas de castelos que destroçara pelo prazer único de senti-los desmanchando-se entre seus inexperientes dedos (concedeu trégua, afinal, paralisada pelo frio movimento do sorvete escorrendo agora pelo seu braço, seguindo, agora, em pingos, pela dobra da perninha). O menino, ao que parecia disposto a entregar aquilo que a mulher já vinha dele recebendo desde longe, na esperança palpável do invisível, interrompe-se, excitado, no último instante, cedendo ao ímpeto infantil de antecipar o que está prestes a acontecer. Veja, mamãe, eu também sei fazer, diria ele, se soubesse falar, dizer estas palavras. Mas a bola mal sai de suas mãos. A mulher tenta pegá-la ainda no ar, com desejo de posse intensificado, algo desesperada, você trapaceou, trapaceou, diria ela, se não estivesse ignorando o entusiasmo exagerado, a alegria pedinte de aprovação que o filho demonstra – sim: filho, porque tem, mesmo de longe vê-se, tem os mesmos olhos cinzas, caídos -, para lançar-se cegamente ao objeto de desejo. A bola foge de suas mãos para ir quicar perto da menina - agora será sua vez de emergir do transe: um transe reminiscente? Amniótico? De uma vida passada? Mas qual? Qual fora seu nome, princesa? Em que altas torres de intransponíveis castelos fora trancafiada? Não, não...: deixava-se levar apenas pelo fascínio do momento, do movimento hipnotizante de uma mágica, que é a vida, simplesmente a vida, pulsando a cada segundo, enquanto um estado físico se transmuta a outro, e uma temperatura opositora ativa-lhe gradualmente os nervos dos membros. A bola quica novamente, agora mais perto. Um leve sobressalto, um piscar de olhos, um abrir e fechar de cortinas, e o passado é apenas um rastro róseo, meladiço (meladiço como mangas maduras). A mãe apanha a bola e sorri. Prepara-se para algo. Mas eu não quero ver. Eu devia estar sozinho. Quem, além de mim, vem à praia num tempo desses? Meu pescoço dói de tanto olhar para trás. Mas não posso evitá-lo, ninguém pode. E então, quem diria, um chute certeiro, sim, um excelente chute, e a bola inicia sua pretensa jornada interestelar. Uma imagem realmente impressionante. A bola, de cores cada vez mais atraentes, parece poder chocar-se a qualquer momento na sólida bidimensionalidade de um céu uniformemente cinza. O menino ergue a cabeça, mas o queixo, pesado, não a acompanha. A menina fica a apontar com o dedo, enquanto entoa uma sílaba prolongada e cadente, mera nota propulsora que determinará, ela sabe, segundo seu fôlego-motor, o limite da ascendência. E continua subindo, subindo, subindo, como se nunca mais fosse parar. E quanto mais alto sobe, mais enche nossos peitos de algo que não poderíamos descrever. Algo que nos torna cada vez mais leves, que nos liberta do fardo do corpo – o peso que é o próprio corpo -, com suas mazelas, limitações, superficialidades... E não há mais dor, há apenas o voluptuoso desejo de seguir em frente, distanciar-se ao máximo, subir, sumir... Será isso a felicidade? A sensação de morte? E essa leveza que é infinitamente mais leve que o ar começa a nos preencher o estômago de modo que não haverá outro jeito senão uma hora explodirmos! E o coração... ah, o coração é apenas (A mãe, apenas olhando para o alto, finalmente orgulha-se de si mesma, por ter conseguido, depois de tantas tentativas, conceber seu fenômeno tão divino e particular). Não!: existir é mais do que isso. Pois algo transcende para além da euforia, da sublimidade. Pois a bola continua subindo, subindo e subindo, e agora todos nós estamos com ela, estamos nela, somos ela. Mas eis que na iminência de tornarmo-nos um novo astro, a gravidade, que sempre vence, nos confronta. Estamos perdendo velocidade. Estamos perdendo força. Iremos parar. Sim, é certo, estamos parando, mas, estranho, parecemos alcançar o alto de uma montanha, o pico de uma montanha extremamente íngreme, escorregadia, gelada. Estamos chegando e sabemos que, uma vez lá, tudo estará perdido. Tudo o que havíamos conquistado se desvanecerá. Tudo o que havíamos reunido se desmoronará numa avalanche devastadora. E lá estaremos nós, junto aos detritos. Estamos chegando, estamos parando. Frio na barriga. E mais um pouco. O limite é algo delicado, sutil, efêmero. Vamos chegar. Mais um pouco. Um pouco mais. (E neste momento me vem à cabeça a imagem de Virgínia sentada num galho alto de um pé de manga. Ela está me chamando, me atirando, lá de cima, tiras de cascas recém descarnadas pelos seus ávidos e doces dentes - dentes entre os quais, vez ou outra, amputando subitamente uma palavra, levava suas unhas em forma de pinça para desprender um pelo impudente. Neste momento o sol havia conseguido penetrar a frondosa folhagem da mangueira, emprestando-me gentilmente um de seus fugidios raios, como um desses flashes eternizadores de instantes, para que eu pudesse imprimir na memória o momento obsceno em que um fio de suco salival se arrebentava brilhantemente entre seus lábios. Seus ungidos lábios.

Quando a bola caiu amortecida pela areia, tomando um rumo inesperado devido a deformidade das pequenas dunas daquele pequeno deserto, eu já estava olhando, de novo, para o mar.

As ondas, uma após a outra, cinzas e brancas e borbulhantes, sabiam pronunciar meu nome. Reivindicavam minha paternidade.

Uma delas veio até mim. Tocou-me no ombro, finalmente. Chamando-me para ir embora.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

A NÉVOA

Meu andar é lamacento
Minha voz é ancorada.
Estou dentro de uma névoa densa
Maciça
De onde um simples aceno de mão exige tempo
E esforço.

Fora da névoa tudo corre bem.
As pessoas andam, comem e dormem
Com fluência.
Parecem ligadas umas nas outras
Por uma corrente, um fio, um rio.

Um rio?

Minha respiração é estreita
Minha vista, nublada.
Enxergo através de um véu sujo
Viscoso
Que faz as formas perderem o contorno
E as pessoas se fundirem nos objetos
Em breves manchas vultuosas.

Que horas são
Sempre me pergunto.
Então olho pro relógio
E percebo que estou no mesmo minuto.

E percebo que 
Estou no mesmo minuto.

Esta névoa, às vezes, parece fazer-se demasiadamente úmida
Oleosa.
Não sei se afundo ou se boio
Em todo caso, deixo-me levar.
Porque a névoa me conduz
Enquanto transito nela.
Não sei aonde ela me leva
Mas sei aonde estou indo.

Escuto vozes distantes
Amortecidas, amordaçadas.
Pessoas falam comigo
E suas palavras, no meio do caminho
Estinguem-se, disformes
Sem significado.
Quando me encontram
Já são fumaça, viram névoa.

"Você sabe onde está a planta?" 
Isabel pergunta.
Mas me demoro a responder.
"Você sabe onde está a lâmpada?"
Ela pergunta, de novo.
E, sem resposta, vai embora, sem paciência.
Mas eu a havia respondido
De alguma maneira, sei que havia...

Estou dentro de uma névoa
Escura, cálida
Que me envolve
Como uma membrana, uma placenta.
Anseio por algo
Um rompimento
Um recomeço...

E, então, ocorre
De uma hora para outra
Indolor
Como uma coisa muito simples de ser resolvida
De eu sair da névoa
E sentir-me... assim, algo expelido...

A clareza sobre as coisas é tamanha
Que a névoa, então, já é parte do passado
De um passado longínquo
De um passado que eu não participo
De um passado que eu não lembro
De um passado que eu duvido sequer ter existido...

Bom dia. Como vai?
Ouso dizer em voz alta
Para que eu seja escutado
E retribuído...
E o que eu ouço é tão claro
Cristalino
Quanto decepcionante...

bom dia bom dia bom dia bom dia 

Algo não está certo
Algo não se encaixa...
Me pego olhando pra trás
Pra um lado, pro outro... procurando...
Sinto falta.
Ouso dizer que é saudade...
Saudade?
É, é saudade.
Mas do que? De quem?

Sorrio, enfim.
Mas só eu sei do que se trata este sorriso.
É claro!
Aliás, veja como meus dentes estão sujos
Corroídos, podres...
Mas ainda assim é um sorriso.

Não há óleo, nem lama, nem fumaça.

A névoa sou eu.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

ASSOMBRAÇÃO

Alguém muito parecido comigo
Acena pra mim, me chamando
A cada esquina.

Eu aperto o passo
Passo reto
Nem olho pros lados.

Depois, não sei bem o quê
Mas algo sempre me parece ficar caindo pelos furos do bolso.
Tateio, procuro, avanço, adentro
E acho senão eu mesmo
Adverso, estranho, intruso, ao avesso...

Nunca perdi nada.
Nunca pedi nada.
Eu carrego uma mala vazia
Sequer tenho documento.

Dessa forma, sigo sem olhar pra trás
Pois, se não vejo o rastro, o rastro não existe.
(Ademais, meu bolso nem está furado...)

E assim, sozinho no meu quarto completamente escuro
Eu fico de olhos abertos.
Se pisco, é por capricho
É pela estranheza
Por essa sensação alheia...

Quem eu seria se...
É inconclusivo.

Porque pego no sono
Ou não pego
Não sei bem
Mas o fato é que tenho dormido muito bem.

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