Não sei o que me acorda. Se é um ruído, ou um sonho, ou algum desconforto, ou apenas o sono restaurado. Simplesmente, sem mover qualquer músculo, abro os olhos e desperto, calma e repentinamente. O tempo que a vista leva para se adaptar à luz do ambiente e focar numa pequena mancha de umidade na parede é o tempo necessário para eu me situar no universo, lembrar que possuo um corpo e um nome. Este corpo, antes inerte e inexistente apenas por ignorância, agora é, constatado meu reconhecimento, inanimado por pura contrariedade e desdém.
Não quero me mexer.
Estou em meu quarto, deitado em minha cama, virado para a parede, e esta parede é tudo o que meu campo de visão consegue alcançar. Sei que é cedo. A luminosidade esbatida da manhã se infiltra pelas fendas do meu quarto de sobrado e, ao atravessar a cortina cor de areia, empresta um tom mais quente ao azul-acinzentado da parede, tornando-a levemente esverdeada.
Sei que faz sol. Que é por volta das oito horas. Talvez nove. Não mais que dez. Sei que é domingo, pois se sustenta um murmúrio distinto que o configura como tal: o vizinho lava o quintal e rega as plantas com o esguicho de água da mangueira que, acidentalmente ou não, atinge o cachorro que corre de um lado para o outro, com as unhas resvalando pelo piso escorregadio. Sei que, a dois quarteirões daqui, um moleque está em cima da laje manobrando com admirável destreza sua pipa, fazendo-a mergulhar das nuvens em um ligeiro corte vertical, para, no último instante, antes de se chocar contra uma antena de tv (a minha antena de tv), mudá-la bruscamente de direção com um suave rasante, ascendendo-a, então, novamente, com um risonho farfalhar de rabiola. Sei que o vento se perfuma de flores artificiais enquanto refresca os pulsos da senhora que estende a roupa no varal. Sei de cor o bordão do feirante que vende laranjas na feira do bairro de baixo.
Sei que atrás de mim, na altura da cabeça, está o criado-mudo, e que, ao lado dele está o armário, e, do lado oposto desse, encostado à parede, está a poltrona, e ao pé da poltrona está a janela. Sei que, ao olhar pela janela, terei a vista de parte do aeroporto da minha cidade. E que a sucessão de pousos e decolagens dos aviões já se tornou banal até para os pequenos pardais que acabaram de sair dos seus ovos. Sei que, se eu me virar agora, irei me acomodar melhor, com um suspiro profundo de quem está prestes a se pôr de pé. Mas não iria me levantar de imediato. Antes ficaria olhando para o feixe de luz por onde as partículas de poeira flutuam como almas arrebatadas para o além. Antes ficaria absorto em alguma ideia indefinida, algo sobre a equivalência entre tempo e tempos, entre a vontade e o não-fazer, algo (caso fosse muito longe) sobre o esforço de não querer esforçar-se... Até ficar perdido, claro, e me achar, e me perder de novo, sem saber ao certo a quê ponto queria chegar. E assim, numa patetice de não sei quantos neurônios, talvez, por um impulso quase involuntário, me descobriria do lençol para mover as pernas - mero preâmbulo entre tantos outros que ocorreriam durante o dia: mais do que eu mesmo, meus pés saberiam que iriam tocar, dali a pouco, a solidez firme do chão, e já sentiriam, antes mesmo de mim, na camada intáctil das solas deles, o gostoso conflito entre a maciez e a aspereza do velho tapete do meu quarto. Mas, não. Não vou me levantar...
...Sei que em alguma caverna gelada um urso entrou em seu sétimo mês de hibernação. Sei que o entardecer nas planícies de Marte é pacato e lindo. Lindo, lindo, lindo...
Não, não vou me levantar.
Esta mancha... (como todas as outras manchas) possui uma fisionomia bestial. E cativa.