quarta-feira, 24 de abril de 2024

IN-FI-NI-TO

Bosque e neblina
Garça e tronco
Descida ingrime
Riacho brando
Rochas arredondadas
Céu de infância
Busco o resto
Brusco e reto
Resgato
Regata 
Riso de graça 
Saias ao vento
Não saia ao relento dizia vó Dalva
Pai, mãe, irmão, tia
Frutas frescas na fruteira
E ninguém come
A maçã se destaca no ar
A televisão se destaca no ar
Fala-se português
Que nós entendemos sem dar atenção 

A noite talvez chova
Enquanto estivermos dormindo
Quero um novelo de lã 
Pra vê-lo se desenrolar
A praia mais próxima está longe
A mais longe está comigo

Um dia viajo pro Japão eu disse
Porque gosto do jeito dos japoneses
Das suas luminárias e becos
Se uma lesma gosmenta se arrastar pra subir no meu pé 
Não vou tirar o pé, não vou tirar

Seu Antônio, meu avô, era preto
E tinha os olhos anuviados
Dependendo da luiz, pareciam azuis
Cheirava a sabonete de flores 
E tomava leite como se fosse alga.
Nunca deixou eu ter um gato
Um dia tive um cachorro
Ou talvez dois
Acho que misturo a mancha de suas pelagens
Logo, tive três cachorros.

Entre paredes permaneço 
Acolhido do mundo lá fora
Mundo sujo, injusto, cruel
Existe um gesto sério no abrir da janela
Faço-o de maneira calculada
Para que pareça corriqueiro
Espio. Busco algum ar puro
Há fumaça preta saindo das chaminés das fábricas
Há um amontoado de pássaros eletrocutados caídos no chão
Não estou em casa
Estou entre outras paredes.

Especulam sobre minha sanidade
Sou incapaz de memorizar
Água, pedras, espuma, areia
Água, pedras, espuma, areia
Salivo, busco com a língua
Nos arredores da boca
Um resto de gosto
O que será que é?
O que será que comi?
Não lembro...
Água... Pedra...
Areia...

Sento
Penso que carrego um filhinho no ventre
E esqueço de corrigir a coluna
Os japoneses sim é que andam eretos 
E são, em sua maioria, magros
Quem me vê assim diz que estou cansado
Mas nunca estive cansado
Só estou velho.
Sim, eu nego os óculos
Não preciso
Meu olho é de thandera
Sempre foi
E o que está borrado, está deduzido
E compreendido
E ninguém pode dizer o contrário
A um velho.
E assim eu sempre vejo, sempre vi
E assim se vive cego sem saber que já o é.

Beatriz. Clarice. Minhas filhinhas.
Chego em casa e, cadê elas?
Uma assiste tv de cabeça pra baixo
A outra tem os olhos vidrados no celular.
Pois espalho os brinquedos no chão com estrondo
Faço a maior balbúrdia 
E depois me deito no chão
E brinco. Brinco muito
A ponto de esquecê-las.
E brinco com os brinquedos
Os brinquedos brincam comigo
Sou mais um dos brinquedos
Sou uma peça de lego
Sou uma barbie
Um xilofone
E quando vejo, estou sozinho
Sem Clarice. Sem Beatriz
Só eu
Apegado aos meus
E a mim mesmo.
Bia? Clara? Onde vocês foram?

Espuma.

Areia...

...Cavalo suado.

Um cavalo corre à beira.
À beira de tudo que há.
À beira da praia.
Crina. Rabo. Relincho. Esguicho 
Fe-li-ci... Qual seu nome?
Lá vem ele.
Vem em ondas que se desenrolam
Como novelo de lã. Branco.
Rocambole de creme
Espuma brilhante
Partículas de sal
Areia, pedras... arredondadas.
Sigo o cavalo até ele sumir
Lá vai ele:
Ele trota até minha vista falhar 
Ele trota, até minha mente falhar...
Tchau, Felicidade! Adeus, amiguinho!
(Com qual leveza se deve um cavalo trotar
Para não deixar pegadas na areia?)
Crina branca... Tal qual... Não. Sera?!
Afe, areia! 
Pedras... crista
Espuma.

Vinte e poucos anos depois
Visito o bairro onde morei até o fim da adolescência 
A garganta preparada pra sofrer engasgos
Os olhos protegidos do sol
E da vergonha das lágrimas.
O sol, sim, podia-se dizer que era o mesmo
Já o resto era outro.
Outras ruas, outras casas, outras caras...
Pode ser que eu tenha reconhecido uma ou duas árvores 
Mas contive o impulso de correr para abraçá-las.
As distâncias se encurtaram
As ruas se fizeram menores
Mais estreitas, mais curtas.
A cruz no topo da igreja parecia alcançável
E em poucos passos subi a rua que levava ao fliperama
Lugar onde pagava-se com fichas o tempo perdido
E eu passei muito tempo lá
Fazendo amigos e rivais.
Porém, não havia mais fliperama
Não havia mais o Seu Armando
Que era o dono do fliperamama 
E que já naquela época era bastante velho
Agora funcionava uma padaria
Que eu logo tratei de mapear
E de recontruir com certo esforço
O lugar onde ficava cada máquina de jogo...
Encostado na parede, perto da entrada
Ficava minha máquina favorita
E agora, no mesmo lugar, tinha um velho sentado
Tomando café preto em copo americano junto ao balcão
Assistindo as notícias do esporte...
Parecia-se muito com o Seu Armando
E embora eu me sentisse por um instante rejuvenescido
E tivesse a impressão de sentir o cheiro do fliperama
Seria impossível tal regressão 
Assim como seria impossível o Seu Armando estar vivo...

Pedi um café.
Sentei-me junto ao balcão.
Assisti as notícias do esporte
E tive a impressão muito forte
Quase agressiva
De quem alguém atrás de mim
Me observava da calçada 
Fazendo conjecturas sobre minha pessoa.

Não olhei pra trás.
Tive medo.

Medo das pedras, da água, da espuma...

E se fosse algum amigo?
Me recuso que me vejam assim!
Diria que foi engano!

Espera. Tenho errado no tempo do verbo.
Me adianto, depois volto, depois retorno.
Quando foi isso? Ano retrasado?
Não, foi hoje. Foi agora.
Está acontecendo agora:

Vou embora o quanto antes.
Antes que acabe o novelo
Antes que eu não tenha como voltar
Antes de meu avô aparecer pra me buscar
E eu ficar sendo motivo de piada nos próximos dias
Entre os amigos e rivais do fliperama.

O deslisar dos carros
O ventilador
Os segredos sussurrados pelos cantos
Tudo remete ao mar
Tudo 
Chega a mim em barulhos de ondas
Me deixando sonolento, tonto...
Sim, estou a par 
Dos que sintonizam o ruído branco
Pra dormir
Então vamos 
Vamos dormir juntos

Eram poucas as vezes que ia à casa da prima Vanessa
Pra passarmos a tarde juntos
Então não perdíamos tempo em colocar nossas melhores ideias em prática.
Numa dessas estabelecemos uma regra espontânea à beira do lavabo: 
Uma boa escovação de dentes deve vir acompanhada de sangue.
Sim. E quem o fizesse primeiro era o vencedor. 
Não sei de onde tirávamos essas ideias de jerico
Mas certamente nossa falta de instrução nos apoiava bastante na hora de arrumar qualquer desculpa pra fazer competição.
E disputávamos, olhando um pro outro, com a escova frenética
Quem lesionava mais rápido a gengiva. 
O cuspe precoce vinha com a esperança de ver o sangue aquoso misturado à espuma da pasta de dente escorrendo em direção ao ralo... 
Depois o orgulho, dentes brancos e fortes como de nenhum outro...

Éramos, sim, senão crianças de mentes desenvolvidas
Já praticando, da nossa maneira, a filosofia banal dos adultos.
Pra nós já era muito claro:

Um deserto bem atravessado, se faz a pé. E descalço.
Até as solas criarem calos, bolhas, rachaduras
E sangue.

Nenhum comentário:

Postar um comentário