domingo, 18 de agosto de 2024

CRISÂNTEMOS

O problema foi ter notado.
Seria o mesmo rosto de sempre, que há pouco havia encarado enquanto me barbeava como em tantas outras milhares de vezes, senão por algum detalhe estranho que só pude então atentar quando estava menos atento: cara lavada, enxugada, pronto a apagar a luz e deixar o banheiro, quando, no último instante, prestes a nos separarmos, o olhar - aquele olhar de soslaio, à espreita - me puxou de volta pela borda do espelho. Pescoço esticado, cenho franzido, perfil esquerdo, direito, queixo projetado... Sim, sem dúvida, havia algo de estranho. Talvez fosse pontual, talvez fosse o conjunto todo da cara, não sei, mas havia algo de canalha, de mazelento, de escarninho, que ia além das novas rugas, das olheiras, da calvície...
Então, notei. Sim, claro!
Com os músculos da fronte a afrouxarem-se pacificamente como um lindo desabrochar de crisântemos brancos brotando pelos poros afora... Notei. 
Era ela:
La Muerte.

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

FURTA-COR

A bailarina, de férias, espera, enfadada.
O tempo parece parado para a próxima hora
E na próxima temporada, já disseram, ela vai ter asas de borboleta...

A bailarina deita no chão de pernas pro alto
A ponta dos pés descalços percorrem o ar
Em uma dança livre de regras, mas não de dor.

A bailarina comprou giz de cera colorido para colorir
Mas diante da folha em branco só conseguiu imaginar
O que não poderia um artista hábil fazer com tantas cores...
Ela então guardou os gizes com muito cuidado
Como se guardasse uma criatura delicada
Que poderia um dia se metamorfosear.

A bailarina, retida, encolheu-se. E dormiu.
Porque dormindo o tempo deixava de existir pra ser só uma casca.
E uma casca de sono espessa a envolveu rapidamente por mil anos...
Lá dentro - dentro do sonho
Sua única ânsia era saber 
Que cores teriam suas asas.