Do trigésimo nono andar eu tinha uma boa vista do que se resumia então o mundo. Estávamos imersos num clima denso, lúgubre, de uma coloração avermelhada, como se enxergássemos através de uma taça de vinho tinto. Era o efeito atmosférico causado pelo Insônia, finalmente próximo de nos abocanhar depois de meses de estimativas e incertezas.
As ruas sofriam a ressaca dos piores dias de delírio e depravação. Os bueiros exalavam o cheiro de onde terminava por escorrer a mistura diluída de todos os pecados cometidos. O sol, já interceptado, nos deixou nas trevas. E foi nas trevas, protegidos pelo anonimato, que mostramos nossa verdadeira face. Foi nas trevas, entre gemidos de dor e prazer, que emitimos nossa verdadeira voz, que é gutural, animalesca.
Quem não enlouqueceu, ficou inebriado por sua própria lucidez. Estávamos, afinal, saciados de tudo que só um fim do mundo poderia conceder.
Depois, os que sobreviveram, ou decidiram viver, depararam-se com o desejo inquestionável de se recolher, quase que ao mesmo tempo, para aquilo que ainda podiam chamar de suas casas, não para se esconderem do inevitável, mas para procurar todo o conforto que pedia a falta de fé e esperança.
Foi quando começamos a cair, aos poucos, num severo ensimesmamento, até instaurar-se uma espécie de silêncio religioso, sibilante, que nos arrepiava os cabelos de todo o corpo quando quebrado pelo menor objeto caído, ou mesmo por um grito abafado pela neblina de algum beco sem saída. Ainda reverbera dentro da minha cabeça uma melodia doce e feminina que direcionou a atenção de todos para debaixo da ponte. Por alguns minutos pudemos esquecer nossa sorte, até a canção ser interrompida com um engasgo seco, justo quando galgava para seu momento apoteótico.
Era preciso ficar calado, porque, assim, era possível escutar o ar sendo aspirado pelo céu, como se aquilo tomasse profundo fôlego antes de proferir uma grande revelação.
Eu também cheguei a procurar a cama, algumas vezes, para amortecer o momento da minha ida, quem sabe, dentro de algum sonho ensolarado, ou mesmo para tentar converter o suplício em mero pesadelo. Mas não havia sono. Pelo contrário, consumia-me a ansiedade, a inquietude da alma e das células, pelo o que iria acontecer. Seria possível sobreviver à ingestão? A quê caminhos avessos seríamos levados depois de adentrado ao absurdo?
Dizíamos negro. Mas não era negro. Era mais escuro que isso. Era mais escuro que uma noite de céu amortalhado. Mais escuro que o espaço sem estrelas. Mais escuro que o absoluto nada, antes da primeira fagulha de ideia de existência. Era, talvez, o negro presente na visão de quem tem os olhos arrancados. Assim eu me sentia quando olhava para o céu, para o centro daquele grande círculo negro, cujo contorno, um halo de luminescência opaca e cor sanguínea, se assemelhava, cada vez mais, a vivos, frescos, úmidos lábios joviais.
Continuei na varanda, olhando fixamente para o alto, como se não houvesse mais nada a fazer. E isso não se deu só comigo. Creio que cada animal ficou a espiar pelo buraco de sua toca. Era possível ver a silhueta de uma ou duas pessoas ocupando cada janela dos prédios e casas vizinhas. Seus olhos deixavam de refletir qualquer brilho. Suas pupilas pareciam dilatar-se para além das órbitas, em profundas olheiras. Era o processo acelerado e indolor da dessecação da pele, carne, músculos... Os orvalhos vermelhos, expelidos dos nossos poros, flutuavam com gotas cintilantes de lágrimas, em uma dança sincronizada e ascendente. Era emocionante. Creio ter sentido minha mandíbula deslocar-se ao esboçar um sorriso...
Mas, já então, esvaía minha consciência, a situação dos meus membros, órgãos, a distinção do que era eu, ou a escuridão...
Resisti até o último segundo.
Como uma criança que não dorme sem antes receber o seu tão aguardado beijo de boa noite.
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