2311. Te observo dormir. Não sei por que, mas algo dentro de mim diz que isso é errado. Indecoroso. Pervertido.
2329. Sinto estar invadindo uma área restrita. Com cuidado, vasculho suas linhas de expressão a fim de lhe furtar qualquer segredo. Estou apreensivo, pronto para fechar meus olhos assim que você abrir os seus.
0008. Você dorme de lado, virada para mim, e parece estar sempre prestes a acordar, como se meu olhar fosse molesto e emitisse a luz inconveniente de uma lâmpada que penetra por suas pálpebras, invadindo o cenário do seu sonho com uma pavorosa aurora escarlate... Mas, não, você não ousa me dar as costas. Dorme tão profundamente, tão segura de que eu nunca poderia te fazer qualquer mal, que, essa presunção, de que eu seja um homem inofensivo, me atinge como uma afronta.
0223. Veja você, tão indefesa, tão vulnerável, com sua camisola folgada por onde seu corpo parece querer fugir. Está calor. E o lençol é uma pele que você troca e vai deixando pra trás, descendo pelos calcanhares. A metade de uma aréola me espia com desconfiança. Sim, eu poderia fazer o que quiser com você, inclusive te matar.
0258. A alvura da sua pele, que eu tanto amo, não é páreo para a obscuridade que nos cerca à cama. Você está cinza - é cinza. E me parece um pouco morta. Talvez esteja, mesmo. Seu rosto, às vezes, adquire essa fisionomia estranha, que vai aos poucos se contorcendo, entrando numa espécie de espiral, até se transformar em algo absurdo, animalesco, monstruoso. Meu coração dispara. Por pouco não grito. Se eu gritar, digo que foi um pesadelo.
0314. Seu rosto não condiz com seu nome. Aliás, qual será o seu nome? Me pergunto o que é isto com quem divido a cama. Quero te acordar, te chacoalhar com violência para que me mostre novamente alguma vida, algum brilho, qualquer brilho, que seja os números vermelhos do rádio-relógio refletidos na superfície dos seus olhos vidrados com o meu pânico!
0315. Sempre tive dificuldade de achar a forma oculta nesses desenhos ambíguos. Me inclino sobre você, metade apavorado, metade curioso. Uma mudança sutil do ponto de vista, o bafo da sua respiração nos meus olhos, e suas feições ordinárias retornam como num passe de mágica. Não entendo, mas me sinto um pouco decepcionado...
0338. Você inspira pelo nariz e expira, parcialmente, pela boca. Uma estreita fenda úmida, sibilante. Ausculto-a como quem procura o mar dentro da concha. E acho, para a minha surpresa, entre a brisa e a maré, alguma excitação perdida, crescendo aos poucos conforme me aprofunda a ideia de me esgueirar por entre seus lábios. Claro, você acordaria mesmo antes de se sentir sufocada. E o tempo para perceber que não se trata nada de um ardente acesso lúbrico, e sim de uma real tentativa de afogamento, seria curto demais para a intervenção de unhas e dentes.
0354. Como era de se esperar, você me dá as costas, reacomodando-se instintivamente, cobrindo-se, inconscientemente, até o pescoço. Você é só cabelos. Ondas prateadas de um mar revolto, sem vento, sob a luz lunar de um céu sem lua. Estou bêbado de sono, prestes a me entregar. Queria escolher um fio, destes o mais branco, antigo, e, como guia, segui-lo, através dos seus anos, em tempos que ainda nem te conhecia... Infância, juventude, mocidade, tudo lá, enraizado. Durante o caminho, lufadas de uma terra distante inabitada senão por flamingos. Macadâmia. Desconheço o que seja, mas é meu perfume favorito. Você sabe, eu ficaria, de novo, mais quatro décadas com o nariz mergulhado nos seus cabelos, até que me afogasse na fragrância rósea e pestilenta do seu condicionador.
0401. Vou sair devagar da cama, me desvencilhar do lençol com cuidado para não balançar o colchão. Vou embora agora, deste jeito, descalço, só com a roupa do corpo, pra nunca mais voltar. Dirão que fui abduzido, que fui alvo de um milagre, que fui tragado para o plano espiritual, como um escolhido, um santo... Antes, talvez, um teste de sensibilidade: se eu te desse um beijo agora, será que, de manhã, ao sentar-se na cama, após despreguiçar-se, colocaria a ponta dos dedos sobre os lábios, não perguntando-se indignada, ora, que espécie de eco é esse, mas tendo a certeza absoluta que, ao notar minha ausência, eu não estaria no banheiro e nem na cozinha, pois, isso que sente, tratou-se de um último beijo de despedida?
0423. Corpo espraiado. Pedras dilacerantes. O lençol está úmido e frio. Calma, é só o meu suor. Fui tomar água e voltei. Resolvi ficar. Eu sempre volto.
0444. Eu sempre fico, você sabe. O que você nunca soube é que sempre fiquei, durante todas essas noites, durante todos esses anos, acordado, como hoje, como agora, te olhando enquanto dorme. Porque tenho pra mim que, se deixar de te olhar, você pode morrer. As pessoas morrem assim, num piscar de olhos.
0525. Eis o primeiro passarinho a cantar. É um pardal. Um ordinário pardal. Sempre gostei de observá-los. Sempre os achei graça. Porém, é verdade, quando era criança acertei um deles com a intenção de machucá-lo. Ele ficou no chão. Está lá até hoje. E eu, até hoje, estou triste, debruçado com um graveto na mão.
0540. Alguma claridade infiltrou-se pelas frestas da janela. Sua pele ganhou cor. Um fio de luz surge por baixo da porta. Tenho a impressão de poder escutar todo o murmurinho deste lado do mundo. Descarga, armário, louça, talher. É um pardal que se sobressai: está se aprontando pra sair.
0555. Você se mexe. Os típicos movimentos que antecedem o espreguiçamento. Você vai acordar. Você vai acordar e, então, eu vou poder dormir. Armário. Salto-alto. Café.
0559. O rádio-relógio vai tocar.
6000. Finjo dormir. Sinto seus movimentos através das ondulações do colchão. Você se sentou. Arrumou o cabelo, esfregou o rosto, soltou um suspiro. Se levantou. Deve ter olhado pra mim. Pensou "dorme como uma rocha".
6001. Começo a perder o raciocínio. Meu corpo entrou em completo estado de relaxamento, de modo que só agora percebo como estava tenso. Meus músculos se afrouxam, meus membros ficam à deriva. Vou apagar. Perder a consciência. Muito tranquilo, muito satisfeito comigo. De agora em diante sou inútil. De agora em diante é... você... o sol...
0602. Escuto vozes. Conheço estas vozes. Mas desconheço o idioma.
6003. ...Os faróis costeiros... têm... a... melhor... vista... pro... mar...
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